A paixão assolapada pelo asfalto de um número significativo dos governantes das últimas décadas levou-os a plantar por todo o território dezenas de auto-estradas. Como as estradas que antigamente “faziam o serviço” eram vetustas e construídas debaixo de outros paradigmas, aconteceu aqui um salto qualitativo (na lógica do automóvel, claro) em que passámos de caminhos estreitos, ladeados de árvores e em ritmo de curva e contra-curva para amplas auto-estradas, do melhor que há por esse mundo fora e…regiamente pagas.
As tais estradas, que o Plano Rodoviário de 1945 classificou (e muitas surgiram depois com base nessa lei) como Estradas Nacionais, numerou e apontou origem e destino, foram sendo sucessivamente esquecidas – umas mais que outras em função das necessidades locais. Algumas desclassificadas para Municipais (ou pelo menos a sua conservação ficou na alçada dos municípios) outras “promovidas” a Regionais (sabe-se lá quem manda nelas…).
Mas elas estão aí. Umas mais bem cuidadas que outras. Com mais ou menos trânsito (geralmente menos) ao dispor dos motociclistas que gostam de descobrir o que o País tem para oferecer de mais genuíno e ao mesmo tempo, proporcionar momentos de condução inesquecíveis.
Duas destas estradas povoavam o meu caderno de encargos e por razões diversas:
– A EN120 que começa em Alcácer do Sal e termina em Lagos, por ser a estrada que atravessa a terra onde vivi até à adolescência e que tem a carga nostálgica de tantas vezes a ter percorrido e
– A EN124 que começa em Portimão e se esgota perto de Alcoutim, atravessando quase todo o interior algarvio, nomeadamente as serranias da zona do barrocal e que há muito tinha a curiosidade de conhecer.
Um convite para ir ao Algarve foi o mote para percorrer estas duas estradas…e mais algumas de bónus!
Dia 1 – Estrada Nacional 120
O dia amanheceu chuvoso (olha a novidade…) e assim permaneceu até cerca de metade da viagem. Nada de relevante e até a proporcionar condições para umas boas fotos ao longo do percurso.
Convém aqui destacar a companheira infatigável para os próximos dias: a Africa Twin DCT (gentilmente cedida pela Honda Portugal) que se veio a revelar uma fantástica máquina para este tipo de percursos com uma polivalência a toda a prova (ver a análise desta experiência aqui).
A primeira paragem foi naturalmente em Alcácer do Sal para marcarmos o início do percurso que me levaria, no final do dia até Lagos. A ponte metálica que une as duas margens do Sado (e que figura nas memórias de muitas gerações que rumavam às paragens algarvias) é o ex-líbris da terra e tem características únicas. Recordando a tipologia de construção “à Eiffel” e inaugurada em 1945, é constituída por 3 tramos dos quais o central é móvel (sobe e desce longitudinalmente) para permitir a passagem de embarcações. Recuperada por alturas de 2007, manteve esta sua característica mas agora com objectivos mais turísticos: para que os galeões do sal característicos da zona possam fazer os seus passeios com os turistas que demandam estas paragens.


Daqui, parti para os 22km que unem a cidade de Alcácer a Grândola, terra da minha infância e oportunidade para rever um velho amigo. Paragem para café que se prolongou por mais de 2 horas. Tempo suficiente para a intempérie amainar. Estes 22km, outrora a maior recta em Portugal, estavam a ser reasfaltados, obra tão necessária como reclamada há muito mas muito tempo.
De Grândola, rumo a Santiago do Cacém atravessando a Serra a que aquela dá nome. E nada como começar por visitar a Ermida da Srª da Penha, local de romaria grandolense em Domingo de Pascoela e que proporciona uma bela vista para a planície a norte.

A estrada até Santiago faz-se de forma retorcida cujas curvas ainda perduram na minha memória de tantas vezes a ter feito ao lado dos meus pais. O piso é mediano a recomendar alguma cautela, mas o traçado é a gosto!

Santiago do Cacém passa a correr, apenas o tempo de uma foto e mantenho o rumo a sul.

O registo sinuoso continua, agora aproveitando o relevo da Serra do Cercal. Antes da vila do Cercal do Alentejo, na Tanganheira, o primeiro desvio do dia. Não sendo objectivo, seria ainda assim imperdoável não visitar Porto Côvo e vislumbrar a Ilha do Pessegueiro, que conheci muito antes de um tal de Rui Veloso tornar famosos. A paisagem é deliciosa. E os restos do temporal ainda se faziam sentir no mar…


Regressei à EN120 no mesmo ponto e pouco depois passei Cercal do Alentejo. Recordo-me de há muitos anos atrás lá haver uma pastelaria com uns pastéis de nata deliciosos. Fiquei com a recordação, não parei e segui viagem. A partir daqui, a estrada em bom estado, segue num registo mais plano o que não significa que as rectas abundem. Mas tornam-se mais frequentes.

Passados São Luis, Odemira e São Teotónio, chego a Odeceixe e segundo desvio. A linda praia que leva o nome desta vila aguardava-me para mais uns “bonecos” que o enquadramento paisagístico valoriza.

De novo, regresso à nossa EN120 em Odeceixe. Fica o registo fotográfico junto de um típico moinho altivo e sobranceiro às ruas estreitas e íngremes da vila.

Sul era o rumo! E entrámos no Algarve.
Pouco mais abaixo…Aljezur. Terra ancestral, povoada pelos Mouros e conquistada pelos Cristão no Séc. XIII. E 1280 recebe o foral concedido por D. Dinis. Visita ao castelo e oportunidade para testemunhar os efeitos do terramoto de 1755. Na altura, a povoação foi completamente devastada. Então, o Bispo do Algarve, D. Francisco Gomes de Avelar mandou construir a Igreja de Nª. Srª d’Alva num local em frente da antiga vila por forma a que os locais para aí se transferissem e abandonassem os terrenos destruídos nas encostas do Castelo. Assim é possivel hoje vislumbrar os dois aglomerados urbanos que constituem esta vila algarvia.
Daqui, o terceiro e último desvio ao rumo traçado: a praia de Monte Clérigo. Linda!

Regresso a Aljezur e à EN120. Pouco à frente o cruzamento que, à direita segue a EN268 até Vila do Bispo e Sagres ou, à esquerda, continua a EN120 rumo a Lagos, atravessando a Serra do Espinhaço de Cão. Por aqui segui.
Esta Serra foi uma agradável surpresa. Recordava-me da má fama de antigamente. Cheia de curvas, estreita…à antiga. Desta vez encontrei uma estrada renovada, mantendo o traçado sinuoso mas com excelente piso, boas bermas e bem sinalizada. Diversão assegurada com curvas muito bem lançadas a possibilitarem uma condução rápida q.b., muito fluída e sempre segura. Muito bom para fim de festa pois Lagos era já ali.
Para um dia que começou molhado, a tarde esteve aprazível…e ainda era muito de dia quando fiz o check in no hotel. Se o objectivo da jornada estava completado, a proximidade do Cabo de S.Vicente era tentadora. Havia tempo para lá ir antes do sol se pôr. E o primeiro e breve contacto com a EN125….autocaravanas e traços contínuos não combinam bem…mas lá cheguei.
As fotos da praxe junto à fortaleza e depois junto ao Cabo…”onde a terra acaba e o mar começa”!








Regresso a Lagos, a hora de jantar estava aí…mas mesmo antes que o sol desaparecesse, uma visita à Ponta da Piedade. Que foi o fecho em beleza deste dia!


No dia seguinte….EN124!
Dia 2 – Estrada Nacional 124
Quando falamos em estradas algarvias, logo nos vem à mente a famigerada EN125. Perigosa, congestionada, mais uma via urbana pejada de turistas do que uma verdadeira estrada. Para lá da Via do Infante, uma outra estrada atravessa o Algarve. A EN124 que a partir de Silves toma o rumo Poente-Nascente, vai desaguar perto de Alcoutim e com vistas para o Guadiana. Esse era o objectivo principal deste segundo dia.
Saí de Lagos e até Portimão, uma volta pela Meia-Praia. Depois, mais um pouquinho da EN125 e chegada a Portimão. Que se atravessa rapidamente até à Praia da Rocha. Aqui seria a saída simbólica para a “outra estrada algarvia”: a EN124!


A Praia da Rocha, que há muito não visitava, está tão diferente relativamente ao que tinha em memória. Significa que não passava por lá há muito, mesmo muito tempo!
Depois, para norte e à saída de Portimão, aí está a EN124. Que me levaria até Silves, passando porto Porto de Lagos onde inflecti para nascente.


A seguir, até S. Bartolomeu de Messines onde rapidamente cruzo com a A6 e a antiga “estrada do Algarve” hoje chamada IC1. Até aqui, a estrada em bom estado segue sem grande interesse que não seja a paisagem e algumas pequenas povoações do interior que nada têm a ver com as imagens estereotipadas do Algarve….


A partir daqui, mas principalmente depois de Alte, começa a diversão. A Serra do Caldeirão que iria atravessar longitudinalmente estava aí! À espera!
Salir passa rápido e, curvas e contra-curvas sucessivas, chego a um ponto fundamental deste dia: o cruzamento da EN124 com a EN2 no Barranco do Velho.

Com uma nota muito curiosa: fazia precisamente um ano que por lá tinha passado, vindo de Chaves e quase a chegar a Faro, cumprindo os 738,5km da EN2. E mais ainda, praticamente à mesma hora. Celebrada a efeméride…segue viagem!
Se até aqui já tinha havido diversão, a seguir seria um festim até à aldeia do Pereiro onde uma surpresa me aguardava.
Até lá, paisagens deslumbrantes, vistas a perder de vista pelo barrocal algarvio. Estrada sinuosa e muito divertida, com bom piso, tráfego quase inexistente e a Africa Twin a portar-se maravilhosamente. Um regalo!




Ao chegar ao Pereiro…uma movimentação estranha e a estrada pejada de gente. Uma feira, daquelas tradicionais, com as inúmeras barracas que vendem desde atoalhados, sapatos, utilidades domésticas ou fatiotas mais ou menos domingueiras, até aos produtos típicos da região e não só – os cheiros dos queijos e enchidos andavam pelo ar – bordejavam a estrada aqui feita rua principal. Até um daqueles vendedores de banha-da-cobra que anunciam aos seus potenciais compradores que “não levam um, não levam dois…mas levam 3 belíssimos cobertores…ou toalhas… ou o que for…”, sempre com inegáveis vantagens pela beleza e qualidade do produto! Já para não falar no preço. Quase dado… Era a Feira de S. Rafael (curiosamente o santo padroeiro dos motociclistas!).
Pereiro – Feira de S. Rafael
O GPS antecipou algum desejo e mandou-me para uma rua lateral…onde 2 ou 3 rulotes de bifanas e cachorros abasteciam os mais esfomeados. O meu caso, portanto…
As surpresas não tinham terminado. O simpático proprietário de uma delas também é motociclista. E preparava-se para, alguns dias depois, se abalançar à EN2. Adivinhem lá qual foi o tema de conversa…

Ainda havia alguns quilómetros a fazer, pelo que avancei. Uma paragem para sinalizar o final da EN124.

8 km depois, Alcoutim. O Rio Guadiana é aqui rei. Navegável até bem mais a montante, permite que a paisagem seja enfeitada com alguns barcos de recreio. E defronte a Alcoutim, debruçada num anfiteatro natural sobre o rio, a espanhola Sanlúcar de Guadiana.



Casario branco, ruas estreitas encimadas por um nobre e altaneiro castelo a recordar a má vizinhança em algumas épocas passadas, com o pessoal da outra margem.
De Alcoutim, e concluida a EN124, principal objectivo do dia, o destino era agora Monte Gordo onde um belo quarto de hotel me aguardava para o necessário descanso. Mas até lá…
Em vez de recorrer à EN122 que me conduziria directamente a Vila Real de Santo António, optei pela M507, a Marginal do Guadiana. Esta estrada, com piso regular e muitas curvas, acompanha o curso do rio e a própria orografia do terreno. Ora sobe, ora desce, umas vezes junto à margem, outras um pouco mais afastada. Linda esta estrada! A convidar a um ritmo de passeio para assim desfrutar das diversas cambiantes da paisagem.


No Montinho das Laranjeiras, passo por umas escavações arqueológicas que bem atestam a antiguidade da presença da civilização por estas paragens. Depois Guerreiros do Rio e Foz do Odeleite onde a estrada inflecte para o interior. Ainda vislumbrei a Barragem de Odeleite.


Em Odeleite, aí sim, a EN122 até Castro Marim e depois até Vila Real de Santo António. Estava concluída a jornada. Não sem antes fotografar o farol mais oriental do Algarve…depois de na véspera ter estado junto do mais ocidental.

Dia 3 – Pelo Sotavento Algarvio
O dia amanheceu bem cedo. A insónia atacou….e às 6:42h a oportunidade para ver o nascer do sol na praia. Lindíssimo!


Depois…fazer tempo para arrancar. A Africa Twin tem uma característica muito própria: o seu trabalhar não é discreto! Nada discreto…e assim, resolvi não acordar a vizinhança do hotel e só por volta das 9 retomar a estrada. Fui percorrendo as praias que bem conheço da época balnear mas agora tão diferentes sem a parafernália de artefactos para banhistas nem os mares de gente habituais do Verão.
Sucederam-se Praia Verde, Altura e Manta Rota.



Depois, visita um pouco mais demorada a uma das pérolas desta zona: Cacela Velha.







Finalmente, Tavira percorrida sem paragem e uma ida até ao embarcadouro dos barcos para a Ilha de Tavira.





No regresso, ainda uma paragem em Cabanas de Tavira.

Não estava terminado o périplo…Castro Marim aguardava-nos, com as suas duas fortalezas, o Castelo e o Forte de S. Sebastião. E a vista magnífica para a foz do Guadiana, em baixo Vila Real e defronte, a espanhola Ayamonte.




O ponto final seria na Ponta da Areia em Vila Real de Santo António. Uma língua de areia que acompanha a foz do rio e entra mar adentro e que é, fisicamente, o ponto final de Portugal a sudeste. Dali para a frente…ou Guadiana ou Oceano Atlântico!


Uma boa forma, simbólica de terminar este dia. O que faltava…passou-se na praia…e foi aqui que, 14 horas depois de uma magnífico despontar do astro-rei, resolvi que o pôr do sol também deveria ter honras de registo. Aqui fica:

Em 3 dias, percorri 2 estradas que eram há muito desejadas. E superaram as expectativas. Visitei ainda algumas paragens conhecidas em alturas mais veraneantes.

Afinal…uma Viagem ao Virar da Esquina!