Mas curiosamente começa um pouco mais a norte e junto ao litoral, em Vieira de Leiria.
A meio caminho entre a Nazaré e a Figueira da Foz era, nos inícios do século passado terra de pescadores como tantas outras da nossa costa. E o mar, sabemos bem, tanto dá como tira.
Vida dura a dos pescadores. E no Inverno mais ainda, porque o mar agreste por longos períodos punha em risco a própria subsistência. Foi precisamente esta necessidade que levou os pescadores de Vieira a procurarem outra forma de, sem abandonarem a sua faina, garantirem o sustento vital durante este período do ano.
Deram assim origem, por volta dos anos 30, a uma das mais curiosas migrações internas do nosso País. Procuraram as margens do Rio Tejo, na zona da lezíria ribatejana, onde durante o Inverno se dedicavam à pesca na água doce do rio. Depois, no Verão regressavam à origem.
Nalguns locais, os proprietários rurais deixaram-nos construir pequenas habitações de madeira à beira rio, caracterizadas por serem feitas em cima de estacas para se protegerem das cíclicas cheias do Tejo (recorde-se que à época não existiam as barreiras artificiais de regularização do caudal do rio, como sejam as barragens de Belver ou Fratel, ou no caso dos afluentes, Castelo de Bode ou Montargil). E dotavam-nas de cais palafíticos para garantirem o acesso aos seus barcos em quaisquer circunstâncias. Curiosamente, a invernia que na costa era madrasta, aqui era benéfica por o rio trazer vasto caudal e naturalmente mais peixe.
Talvez por serem originários de Vieira, lhes chamaram “Avieiros” ou “nómadas do rio” e a esses pequeníssimos aglomerados, ou assentamentos, “Aldeias Avieiras”. De tal forma que muitos acabaram por nelas ficar definitivamente de modo que ainda hoje são habitadas (mas muito pouco).
As Aldeias Avieiras foram o meu destino desta jornada: do Cabo à Póvoa.
Comecei no Cabo
O Cabo a que me refiro situa-se defronte de Vila Franca de Xira, na outra margem. Já ouviram falar na “recta do Cabo”? Pois, é esse que lhe dá o nome.
Recordemos que antes de 30 de Dezembro de 1951, a travessia rodoviária do Tejo mais próxima de Lisboa era em Santarém pela Ponte de D. Luís I. Inaugurada em Setembro de 1881, durou 70 anos a ambição de ter uma travessia mais próxima da capital.
Até lá, era precisamente no Cabo que pessoas, carros e até o gado que se destinava ao matadouro da capital, tomavam os barcos para atravessarem os cerca de 500 metros que os separavam da margem direita. Pequenos barcos a motor, chamavam-lhes os “gasolinas”.
Hoje, apenas resta um pequeno molhe (talvez dessa época) e acima de tudo uma bela vista para a vila ribatejana e para a magnífica ponte Marechal Carmona, inaugurada no penúltimo dia de 1951.
Do Cabo segui até Samora Correia para apanhar a EN118 que me levaria a Salvaterra de Magos. Seria aí que começaria o périplo pelas Aldeias Avieiras e também por alguns outros pontos interessantes desta região das lezírias.
De Salvaterra ao Escaroupim
Salvaterra foi, até finais do Séc. XIX destino real e da corte. Aqui se dedicavam à “nobre arte da caça” e certamente também aos primórdios da arte taurina.
Salvaterra de Magos tinha importante Palácio Real. Desconhece-se a sua origem, mas existem registos datados do Séc XIV (casamento real entre a Infanta D. Beatriz e o rei D. João I de Castela). O período dourado do Palácio foi durante o Séc. XVIII, nomeadamente a sua ampliação por obra do arquitecto real Carlos Mardel.
Foi também nessa época construído, adjacente ao Palácio, um Teatro de Ópera por onde passaram os mais prestigiados músicos da época.
O terramoto de 1755 inflingiu os primeiros danos, que foram posteriormente reparados. Mas a decadência estava próxima. O exílio da Casa Real no Brasil e depois, incêndios e abandono foram responsáveis pela sua destruição.
De todo este edificado restam hoje apenas a Capela Real no centro da Vila e a Falcoaria Real.
Uma vez que não tinha visita marcada, ficou apenas uma pequena passagem para registo graças à simpatia das pessoas que lá são responsáveis por mostrar este património a quem o pretende conhecer. Garanto que vale a pena e ficou desde logo prometida uma visita detalhada. Ainda assim, passei pelo pequeno núcleo museológico, pelo Pombal e pude ver algumas das aves que desfrutavam da manhã solarenga no pátio do edifício.
Dali ao Tejo é um pequeno passo. Comecei pelo Bico da Goiva. É aqui que começa a Vala Real de Salvaterra (Real porque era por aqui que o Rei e a Corte chegavam de barco) – paralela à também Vala Real da Azambuja, na outra margem e que visitaria mais lá para o final do dia.
Espaço calmo e silencioso, destinado a quem queira contemplar a calmaria do curso do rio e eventualmente fazer um piquenique.
Segui viagem e a paragem seguinte foi a Praia Doce. Nome sugestivo…
A época balnear já lá vai e isso nota-se pois a areia já era pouca (no próximo ano a autarquia terá que fazer nova reposição, o que é normal nestas praias fluviais).
As pequenas infraestruturas destinadas a quem a procure para passar um dia agradável lá estão e certamente por isso o nome com que a baptizaram.
Pouco mais à frente, Escaroupim. Porventura a mais conhecida de todas.
Ponto de partida de excursões de barco pelo rio, podemos ver ainda alguns resistentes cais palafíticos, uns poucos barcos de pesca típicos entremeados com outros mais modernos e ainda um exemplar de uma casa típica destas aldeias (para turista visitar…mas estava fechada…).
Um pequeno parque de merendas compõe o enquadramento que nos permite, ao longe e na outra margem vislumbrar o casario branco de Valada.
Próxima paragem: Muge
Estando por aqui, e sendo hora de reabastecimento calórico, não poderia falhar uma visita ao Silas. Local de romaria – e de referência – para os apreciadores desse petisco nacional chamado bifana! Mas antes de consumar o ataque à iguaria, ainda havia que ver.
Comecei por uma pequena ponte romana, mesmo à saída e juntinha a outra mais moderna por onde passa a estrada nacional. Lamentável é o que posso dizer. Se a ponte aparentemente está bem conservada e é utilizável já o mesmo não se pode dizer do seu enquadramento. O matagal é imenso, a ponto de não ser fácil fotografá-la e impossível ter a percepção completa da sua dimensão. Nem uma placa existente à entrada, que algo sobre ela diria, é minimamente legível…
Logo ali, fica a Casa de Cadaval. Casa nobre antiquíssima, com rico património e ainda hoje dedicado à exploração agrícola a que adiciona um complemento turístico que justifica visita atenta e demorada. Uma estadia será certamente a melhor forma de desfrutar. Mas não era o meu caso.
Ainda fui até Porto de Sabugueiro. Para lá de ser um assentamento avieiro na actualidade mais recente, foi importante porto fluvial na época dos romanos. Existem vestígios arqueológicos importantes e algumas escavações, mas a avaliar pelo tratamento dado à ponte….
E com estes amargos de boca… nada como ir provar algo mais saboroso…porque era hora de almoço.
Mas antes, até porque era mesmo em frente do local do repasto, uma olhadela à Igreja Matriz e ao curioso coreto
A Igreja Matriz de Muge, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, foi edificada em 1297. Nesta época havia uma grande afluência de colonos a Muge que, como não havia igreja, não pagavam o dízimo. Assim, por ordem do bispo de Lisboa, o pároco de Salvaterra fez construir ali uma igreja, o que aconteceu em 1297. No século XVII foi sujeita a profundas obras de reparação. A traça actual data do final do Séc XIX.
Mesmo ao lado da Igreja Matriz fica um coreto com a tradicional base octogonal.
Até Valada pela Ponte Rainha D. Amélia
Consumado o ataque à bifana, voltei ao caminho. Era tempo de passar para a outra margem.
A travessia faz-se pela bonita ponte Rainha D. Amélia. Antiga ponte ferroviária (a actual corre mesmo ao lado), característica da época do ferro na construção de obras públicas, foi inaugurada em 1904. Com 840m de comprimento foi convertida para uso rodoviário em 2001 e é uma peça importante nas acessibilidades a Valada, principalmente durante as habituais cheias do Tejo que frequentemente a deixavam isolada da Azambuja.
Valada do Ribatejo tem um certo sortilégio. Não têm conta as vezes que já por ali passei. Sempre com o mesmo prazer. Paisagem ribeirinha bem cuidada, com um pequeno molhe a fazer as vezes de marina, um parque de merendas agradável com árvores frondosas propiciadoras de sombras convidativas em dias de maior canícula.
Se olharmos para o casario, temos à nossa frente o dique que protege a terra das investidas do Tejo. Construído em 1881, protege estas gentes desde então, com destaque para as cheias de 11 de Fevereiro de 1979 que estiveram mesmo à beira de o ultrapassar. Acompanhou-nos desde que atravessámos a ponte em Porto de Muge e ficaria connosco durante mais um tempo, até perto da Praia Fluvial da Casa Branca.
Em Valada, destaca-se a presença da sua Igreja, consagrada a Nossa Senhora do Ó ou a Nossa Senhora da Expectação, com a sua branca torre sineira e um relógio que tem a curiosa característica de acertar na hora duas vezes em cada dia. Está parado no meio-dia. Ou será meia-noite? A construção original data do Séc. XIII, foi consagrada apenas no Séc XVI mas a sua construção actual é bastante mais recente.
De regresso às Aldeias Avieiras
A primeira surge quando no Reguengo viramos à esquerda por um caminho de terra batida. É a Palhota e para lá das suas características bem típicas, talvez das visitadas aquela que melhor conserva as características típicas. Para lá do casario tem também um comprido molhe palafítico, em bom estado, diga-se.
Foi aqui na Palhota que viveu durante algum tempo o escritor Alves Redol que descreveu a vida das comunidades que habitavam as margens do Tejo. E também aqui foi filmado em 1975 o documentário “Avieiros “ pelo realizador Ricardo Costa que retrata a vida dos pescadoras da aldeia da Palhota.
A próxima paragem foi no Porto da Palha. Aldeia situada na quinta do Lezirão, cujo proprietário dava permissão para a construção de barracas; chama-se assim pois era o porto onde se descarregava palha para as quintas. Neste local, havia cerca de nove palafitas em madeira e respectivas cozinhas, correspondentes a anexos construídos posteriormente em frente às casas.
Prossegui. Pouco mais à frente, fica a Praia Fluvial da Casa Branca. Melhor dizendo…ficava. Porque aquilo que agora existe é apenas uma recordação: um pórtico metálico enferrujado à entrada e que serviria eventualmente para dar as boas vindas aos visitantes e uma edificação em ruínas. De praia nada. O leito do rio açoreado e vastamente infestado por plantas invasoras que julgo serem jacintos d’água. Uma palavra apenas: incúria!
No Palácio das Obras Novas
Falei em incúria? Então que dizer do estado ruinoso deste Palácio situado na margem da Vala Real da Azambuja?
O Palácio das Obras Novas, também conhecido por Palácio da Rainha, está edificado na Foz da Vala Real (finais do século XVIII, princípios do século XIX),
Funcionou como um posto de controlo do tráfego de embarcações, de pessoas e de mercadorias, que transitavam através da Vala Real, e também como entreposto e estalagem de apoio à antiga carreira de vapores que fazia o circuito entre Lisboa e Vila Nova de Constância.
A sua envergadura e o encanto natural de toda a zona envolvente atraíram várias figuras da nobreza a passarem ali largos períodos de descanso. O palácio, de arquitetura neoclássica, traduziria robustez, sobriedade e monumentalidade…mas actualmente salva-se apenas o enquadramento paisagístico que rodeia esta ruína.
Merece referência que a primeira vez que aqui estive, há alguns anos, chegava-se ao Palácio (então já abandonado e degradado) por uma comprida alameda de frondosas palmeiras. Mas nem estas resistiram. A recente praga do escaravelho encarregou-se de as matar e hoje restam apenas os seus cotos secos.
O regresso e a última recordação do passado avieiro
Depois de uma breve paragem junto ao ponto onde a Vala do Carregado desagua no Tejo, a fazer recordar outras histórias já contadas, nomeadamente a da Real Fábrica do Gelo na Serra de Montejunto porque era por aqui que os barcos eram carregados com o gelo que se destinava à Corte na capital, prossegui até ao último ponto a visitar neste périplo.
Sabia que o que iria encontrar nada tem hoje nada ver com o passado avieiro do Rio Tejo. Todavia, a comunidade mais próxima de Lisboa ficava junto à Póvoa de Santa Iria. Na zona ribeirinha, junto ao Bairro dos Pescadores.
Toda a margem do Tejo tem vindo a ser alvo de obras de requalificação que permitem que a população possa usufruir de toda esta frente para o rio. E isso é muito positivo, valoriza sobremaneira este território e resulta em melhoria da qualidade de vida destas populações.
Só não sei se não teria sido possível preservar a memória da anterior utilização do rio. Existia aqui um cais palafítico que admito estaria em estado ruinoso mas teria valido a pena recuperar. Até para que a memória não se perdesse…
Para lá da sugestão de um roteiro muito agradável e com diferentes pontos de interesse, que também esta história que conto sirva para conservar a memória de um tempo em que as vidas eram muito mais difíceis mas que o esforço, a imaginação e a capacidade de adaptação conseguiram minorar essas dificuldades.
De notar que para montante do ponto onde atravessei o Tejo – Ponte Rainha D. Amélia em Muge – ainda existem mais algumas aldeias com estas características, como por exemplo as Caneiras perto de Santarém. E todas elas são parte do nosso património cultural.
Um passeio pela memória mesmo ao… Virar da Esquina!
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