As estradas esquecidas da Beira Baixa

Esta é uma forma de dizer mea culpa. Vivi dois anos, já há muito, em Castelo Branco mas por falha imperdoável não conhecia os terrenos que agora pisei. Estas são as estradas esquecidas da Beira Baixa (há outras que ficarão para nova oportunidade). 

Um País tão pequeno como o nosso é estranho pois parece que está inclinado em direcção ao oceano. Como se fosse um anfiteatro em que as últimas filas ou estão desocupadas ou quem lá está … não pertencesse aquele espectáculo. 

Temos a sensação que os pedaços de território que ficam encaixados entre as principais vias de comunicação mais a leste e a linha que nos separa de Espanha acabam por ficar esquecidos. Esquecemo-nos dos que lá estão, porque só lá vai…quem lá precisa de ir. 

Comecei a jornada ainda no Alentejo mas já próximo da Beira Baixa, em Nisa. O “aquecimento” foi feito nos 18km que separam a última vila alentejana da primeira beirã, Vila Velha de Ródão, na Estrada Nacional 18 e que, numa sucessão de curvas e contra curvas em bom piso, fazem atravessar a Serra de Nisa. 

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EN18 Serra de Nisa – Casa de Cantoneiros

Quase a chegar às margens do Tejo, vemos o rio acabado de entrar em Portugal ainda envolvido em alguma névoa matinal. 

Convém dizer que este passeio ocorreu no final de Novembro, mesmo na véspera do começo dos estados de confinamento que, infelizmente, começam a ser demasiado habituais. A manhã estava fria mas o dia compôs-se. De qualquer forma, era preciso acautelar o tempo pois havia muito que percorrer e nesta altura os dias são demasiado curtos. 

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Rio Tejo manhã cedo

 A descida para a ponte de Ródão é magnífica, com o rio aos nossos pés. Lá chegados, uma visão já habitual mas sempre deslumbrante: as Portas de Ródão. As escarpas de ambas as margens abraçam o Rio Tejo num abraço bem apertado…. 

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Portas de Ródão
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Rio Tejo e Ponte de Vila Velha de Ródão
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Portas de Ródão e Marco da EN18

Logo a seguir a Vila Velha de Ródão (onde senti o “perfume” industrial que caracteriza esta terra) deixei a EN18 e rumei ao interior a caminho do Parque Natural do Tejo Internacional. De facto, alguns quilómetros a montante de Vila Velha de Ródão, fica a Barragem de Cedillo que marca o ponto onde o rio passa a ter, no seu curso, ambas as margens em território nacional. Porque para trás e durante alguns quilómetros, só a margem direita é nossa. Seria neste pedaço de território que iria começar este périplo. 

A primeira aldeia por onde passei foi Perais, uma pequena aldeia de 500 habitantes. 

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Perais
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Igreja Matriz de Perais

Continuei e a seguinte localidade deixa o registo de um nome estranho: Alfrivida…. 

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 Segui a estrada cujo destino era agora Malpica do Tejo. A dado momento, a travessia do Rio Pônsul na imponente Ponte de Lentiscais, por baixo da qual fica um pequeno parque de merendas e um ancoradouro para quem ali queira fazer passeios por este afluente do Tejo. 

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Ponte de Lentiscais
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Rio Pônsul

Quando se percorrem estas estradas temos por vezes que as partilhar com outros. Dá para todos. 

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Perto de Malpica do Tejo

Em Malpica do Tejo tinha como objectivo visitar o cais que fica na margem do Rio Tejo. Tinha curiosidade pois o terreno escarpado das margens prometia uma bonita paisagem, com Espanha defronte. Por razões que não consegui apurar… a estrada estava cortada.

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A estrada acabava ali….

20201127_112319.jpg_8.39_jpgAo fundo, Malpica do Tejo. Aqui voltei para trás…

Regressei a Malpica e à saída uma peculiar capela, com trânsito giratório à sua volta. Uma rotunda original, sem dúvida. 

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Capela (rotunda) em Malpica do Tejo

Esta região pertenceu, desde os tempos da Reconquista Cristã à Ordem dos Templários (mais tarde Ordem de Cristo), tendo-lhes sido doados em 30 de Novembro de 1165 (faria daí a 3 dias 855 anos!). O objectivo era a protecção e defesa do território bem como algum desenvolvimento agrícola, favorecido pela proximidade ao Tejo. 

Existem alguns testemunhos da presença humana em tempos pré-históricos e, mais tardios, também dos romanos.

A orografia do terreno do Parque Natural do Tejo Internacional faz com que a estrada seja sinuosa e sempre em sobe e desce, mesmo que não haja grandes declives ou variações de altimetria. Com o trânsito quase inexistente, acaba por ser bem divertida. 

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Estrada no Parque Natural do Tejo Internacional

Um pouco mais à frente, a aproximação a Monforte da Beira. Dizem as lendas que o nome da terra, Monforte, deriva dos “Montes Fortes” que a rodeia e a protegem. Em tempos antigos serviria para abrigo dos rebanhos que por aqui andavam, defendendo-os das intempéries. Diz-se “da Beira” para a diferenciar da localidade homónima situada no Alto Alentejo. 

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Monforte de Beira
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Igreja Matriz de Monforte da Beira
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Monforte da Beira – Torre do Relógio
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Monforte da Beira

Saído de Monforte, a estrada continuava com as suas características sinuosas. A descida para a Ribeira de Aravil que levava caudal apreciável foi oportunidade para apreciar a paisagem. 

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A descer para a Ribeira de Aravil
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Ribeira de Aravil

Um pouco mais à frente, outra aldeia com um nome curioso: Cegonhas! Somos bem vindos o que é sempre agradável! 

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Bem vindos a Cegonhas

Finalmente cheguei a um dos objectivos do dia. Rosmaninhal é, se olharmos para o mapa, o posto avançado nesta região. Freguesia que tem a nascente Espanha e a sul o Tejo, sendo que na margem oposta deste é também território espanhol. Tem actualmente cerca de 500 habitantes e chegou a ser sede de concelho entre 1510 e 1836. Percorri algumas das ruas desta terra com uma bonita vista. 

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Rosmaninhal – Capela de S. Roque
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Rosmaninhal – Pelourinho
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Rosmaninhal – Rua e vista para o Parque Natural do Tejo Internacional
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Rosmaninhal – Igreja Matriz e Torre do Relógio

 Deixei para trás a histórica vila, onde já não existem registos do seu ancestral castelo ou das suas muralhas, sendo certo que existem referências bem antigas à sua existência. Natural aliás, dada a posição estratégica face ao vizinho espanhol. 

Segui para norte agora, rumo às Termas de Monfortinho. De passagem, em Zebreira duas curiosidades. Uma peça de “arqueologia rodoviária” não muito bem conservada e um pormenor da bonita escola primária.

Até aqui, uma nota de profunda tristeza nas terras percorridas. Praticamente desertas, ruas vazias, não só pelos seus poucos habitantes mas também pelo facto destes tempos estranhos levarem as pessoas a fecharem-se em casa. 

Não sei se foi real ou apenas impressão, mas fiquei com a sensação que a minha passagem lá também seria, por estes motivos, dispensável. Naturalmente compreendo. E leva-me a reflectir se nestes tempos tão difíceis faz sentido impormos a nossa presença que noutras circunstâncias, seria não só desejada como bem acolhida. 

Em Zebreira, estes pensamentos quase se desvaneceram ao passar pela Escola Primária. Um bando de crianças brincava no recreio. Uma imagem de alegria e também de satisfação por ver que alguma renovação geracional se fará por aqui. 

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Zebreira – Painel de azulejos publicitário
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Zebreira – Pormenor da Escola Primária

Cheguei finalmente às Termas de Monfortinho. A fronteira está mesmo ali. Só para marcar o ponto, resolvi entrar no país vizinho e rapidamente regressei…até porque a estrada do lado de lá era pior! Os objectivos da jornada eram por cá e não havia tempo a perder porque a luz do dia terminaria bem cedo. 

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Termas de Monfortinho – Espanha é já ali

Vem de tempos ancestrais a utilização das águas termais de Monfortinho. Os romanos, grandes apreciadores terão sido os primeiros a desenvolver o seu aproveitamento. Apesar de não haver registos, sabe-se que por aqui andaram. E será desta altura a utilização das águas da Fonte Santa de Monfortinho. 

Com um largo espectro de utilização com benefícios para a saúde, foram sendo utilizadas pelas populações quer de lado português quer do lado espanhol. Até porque a fronteira é mesmo ali, com o Rio Erges a separar os dois países. 

Apesar da riqueza das suas águas, as Termas de Monfortinho nunca conheceram o desenvolvimento de outras estações termais devido aos difíceis acessos que a tornavam, até há bem pouco tempo, muito afastada e pouco apetecível como destino turístico e de saúde. 

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Termas de Monfortinho
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Termas de Monfortinho – Rio Erges – Do lado de lá é Espanha

20201127_134637.jpg_8.53_jpgTermas de Monfortinho

Depois das Termas de Monfortinho, que acredito noutros tempos e noutra altura do ano estaria a fervilhar de gente, era tempo de rumar à histórica vila de Penha Garcia. 

Alcandorada no cimo do monte, com uma ruína do seu outrora altaneiro castelo, que se supõe ter sido mandado construir por D. Sancho I, conserva ainda o casario típico nas suas ruas íngremes. 

Teve foral em 1256 recebido de D. Afonso III, tendo o município sido extinto em 1836. 

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Penha Garcia – vista panorâmica
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Penha Garcia – Rua e Castelo ao fundo
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Penha Garcia – rua típica
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Penha Garcia – Pelourinho
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Penha Garcia – Igreja Matriz
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Penha Garcia – Torre da Igreja e Castelo
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Barragem e Fragas de Penha Garcia
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Penha Garcia – Castelo

20201127_145704.jpg_8.18_jpgPenha Garcia – Estranho….

Depois de Penha Garcia, continuei. Era agora a altura de visitar a que em tempos foi designada como a “aldeia mais portuguesa de Portugal”: Monsanto. 

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Monsanto – panorâmica

À medida que subimos ao “Mons Sanctus” pelo pedaço sinuoso de estrada , começamos a ter a noção do poder e dimensão da natureza. 

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Monsanto – A natureza dá-nos a noção da nossa dimensão

Monsanto é um exemplo claro da capacidade de adaptação humana ao que a terra nos oferece – ou condiciona. O casario típico ora contorna, ora se sobrepõe aos enormes blocos graníticos dando um cunho muito próprio a esta vila original. 

Historicamente, é ancestral como provam os forais que sucessivamente lhe foram atribuídos por D.Afonso Henriques, D.Sancho I, D.Sancho II e D. Manuel I

Do Largo do Baluarte temos uma magnifica vista para as terras que se espraiam a seus pés. Depois…é sempre a subir! 

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Monsanto – Vista do Largo do Baluarte
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Monsanto – Panorama com a Torre do Lucano ao fundo
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Monsanto – Igreja da Misericórdia e Torre do Lucano.
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Monsanto – Igreja Matriz ou de S. Salvador
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Monsanto – rua
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Monsanto – pormenor
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Monsanto – rua
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Monsanto – A força da rocha

20201127_153855.jpg_8.52_jpgMonsanto – Igreja Matriz ou de S. Salvador

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Monsanto – A caminho da Torre do Lucano
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Monsanto – Beco
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Monsanto – Casa típica

Em Monsanto, para lá das construções habituais em terras antigas – as igrejas, o pelourinho, o castelo – encontramos diversos solares de famílias abastadas – o da Família Pinheiro ou da Fonte Mono, o da Família do Marquês de Graciosa, o da Família Melo ou dos Condes de Monsanto, ou ainda o dos Priores de Monsanto. Também passamos pela casa do escritor Fernando Namora e o consultório onde exercia medicina, bem como a casa onde habitou Zeca Afonso. 

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Monsanto – Solar dos Pinheiros ou Casa do Chafariz
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Monsanto – horizonte
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Monsanto – ruina e panorama

O sol avançava rapidamente para o ocaso. A luz do dia desvanecia-se mas ainda sobrou um pouco para terminar a jornada numa curta visita a Idanha a Velha. 

O seu nome poderá derivar da denominação romana “Cidade dos Igeditanos” (Civitas Igaeditanorum), terminologia que viria a tornar-se Igeditânia. O nome Egitânia só surge em documento do século VI e dele derivam a forma visigótica Egitânia e a forma árabe Idânia. 

Fundada na era do Imperador Augusto (século I a.C.), a fundação deste núcleo populacional teve para Roma uma significativa importância pela sua localização entre Guarda e Mérida. A ocupação romana desta zona está bem comprovada pela observação detalhada das muralhas edificadas entre os séculos III a IV, quando do início das Invasões Bárbaras. Segundo algumas teorias, terá sido aqui que, em 305, terá nascido o Papa Dâmaso I. 

Os primeiros sinais de prosperidade vieram com a conquista visigótica, durante a qual foram construídos a Catedral, o Palácio dos Bispos, o Paço episcopal e a Ponte de São Dâmaso. Em 713, os mouros tomaram a cidade e destruíram-na. Reconquistada pelo Rei Afonso III de Leão, foi perdida novamente, só tendo sido definitivamente tomada por D. Sancho I. 

Em 1319, D. Dinis doou-a à Ordem de Cristo e o foral só foi renovado no tempo de D. Manuel I. Os seus marcos mais importantes são o Pelourinho, a Igreja Matriz, as Capelas de São Dâmaso, de São Sebastião e do Espírito Santo. 

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Idanha a Velha – Fortaleza – Porta Norte
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Idanha a Velha – Igreja de S. Maria – Sé Catedral
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Idanha a Velha – Torre dos Templários

Em Idanha a Velha terminei a jornada pelas estradas esquecidas da Beira Baixa.

Deliberadamente porque já conhecia e porque o tempo era escasso, não visitei a fronteiriça Segura com a sua ponte romana sobre o rio Erges e, alguns quilómetros mais à frente, já em Espanha, a magnífica ponte romana de Alcântara sobre o Rio Tejo. 

Era tempo de regressar. Apesar de pouco passar das 5 da tarde, a noite tomava conta da paisagem. Depois das Termas de Monfortinho já fui vendo mais algumas pessoas nas ruas das terras visitadas. Sempre atenua a sensação atrás referida. Mas estes tempos são muito estranhos. E pouco alegres. 

Assim se fez mais uma Viagem ao Virar da Esquina, desta feita por um recanto esquecido do nosso território.

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As estradas esquecidas da Beira Baixa

“- Romeiro, Romeiro, quem és tu?… ” “- Ninguém!”

Uma viagem na qual a chegada é (quase) o ponto de partida e onde a paisagem e as memórias se vão cruzando no nosso caminho…

Este é, de certeza, o diálogo mais conhecido da literatura portuguesa. Poucos de nós teremos escapado ao Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett nos bancos da escola. Já agora, Almeida Garrett que terá escrito o primeiro livro de viagens (se não contarmos com os cronistas da época dos descobrimentos): “Viagens na Minha Terra”.

 O “Frei…” passa-se por volta de 1600 e o Romeiro é D. João de Portugal, nobre cavaleiro que acompanhou D. Sebastião na tragédia de Alcácer-Quibir mas que, contrariamente a El-Rei, em vez de morrer ficou cativeiro por mais de 20 anos. Ao regressar não quis logo identificar-se porque tal poderia por em causa a resistência que existia ao domínio dos reis espanhóis.

Este pedaço da trama passa-se no que fora o seu palácio, situado em Almada. Essa Almada que naquela época estava separada de Lisboa por 1 quilómetro de rio (como hoje aliás….) mas muito mais no ambiente. Deste lado do rio respiravam-se os ares do nacionalismo português e o ar puro de terras mais saudáveis. Do lado de lá ficavam os espanhóis que governavam, os portugueses que ajudavam e, acima de tudo, uma população dizimada pela peste.

 Mas isto, perguntarão, vem a que propósito?

 Porque a viagem desta vez começa em Almada, mais propriamente em Cacilhas. Mesmo em frente de Lisboa, logo ali…com o Rio Tejo de premeio. É aqui que, de acordo com o Plano Rodoviário de 1945, começa a 10ª estrada do País pela sua importância: a EN10.

Estradas nacionais 1 a 10
PRN45 – as 10 principais estradas

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Cacilhas – Início da EN10

Esta é uma estrada que, desde o início é atípica. Não se estica a longo de um pedaço do território. Mais propriamente circunda-o. Afinal, o seu principio deixa Lisboa para trás para no final…voltar a entrar na capital! Nem sempre assim foi, mas isso veremos adiante.

 Como estrada propriamente dita, é desinteressante. O seu traçado tem pouco para dar prazer a quem conduz. Ora porque em parte muito significativa é urbano ou sub-urbano, com demasiado tráfego, ora porque nas partes em que atravessa uma paisagem mais rural, nem aí se torna desafiante (mas carece de muita atenção!).

 Então porquê falar dela? Em primeiro lugar porque sempre achei interessante ir a caminho de Lisboa, proveniente de Setúbal pela EN 10 e ouvir na rádio que havia engarrafamentos em Sacavém a chegar a Lisboa…também na EN10! Mas principalmente porque há sua volta existem imensos pontos de interesse e que nos testemunham muito da nossa História, principalmente da mais recente. Portanto vamos lá!

 De Cacilhas à Arrábida

 Cacilhas fica mesmo defronte de Lisboa. Aqui, muita gente toma o barco para ir para os seus empregos na capital. Tempos houve (recordo-me lá muito ao longe) em que se formavam longas filas para fazer esta travessia nos ferrys que transportavam viaturas. Era a única forma de lá chegar porque só em 1966 foi inaugurada a então Ponte Salazar e hoje 25 de Abril. Até aí, era o barco ou dar a volta por Vila Franca de Xira (pela EN10…). E, isto só depois de 1951…altura em que aí foi construída a Ponte Marechal Carmona, porque antes era em Santarém que se atravessava!

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Lisboa logo ali

4 - Farol de Cacilhas.jpg_6.52_jpgFarol de Cacilhas

Logo ali ao lado fica o núcleo museológico da Marinha Portuguesa com o submarino Barracuda e a fragata D. Fernando e Glória em docas secas. O submarino que esteve no activo até 2013 depois de 40 anos ao serviço e aquela que é a 4ª mais antiga fragata de guerra no mundo, o último navio inteiramente à vela da nossa Marinha (ao serviço entre 1845 e 1878).

5.3 - Barracuda e D. Fernando e Glória
Barracuda e D. Fernando e Glória

5.1 - Barracuda e D. Fernando e Glória
Submarino Barracuda

5.2 - Barracuda e D. Fernando e Glória
Fragata D. Fernando e Glória

Assim que deixamos a beira rio para trás, confrontamo-nos com o imponente pórtico da Lisnave. Entramos numa parte importante daquilo que há 40 anos era chamada de Cintura Industrial de Lisboa (veremos outra parte dela, ao chegar, entre Vila Franca e Sacavém). Hoje são ruínas, mas nessa altura (décadas de 60 e 70 do século passado) muita da riqueza produzida em Portugal vinha daqui.

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Pórtico da Doca Seca da Lisnave

Os estaleiros navais da Margueira – a Lisnave – possuíam a maior doca seca do mundo e tinham um protagonismo importante em todo o comércio petrolífero porque era aqui que os gigantescos petroleiros vinham fazer manutenção quando regressavam vazios às arábias para novos carregamentos. Só na Lisnave chegaram a trabalhar 10 mil pessoas. E naturalmente todas as indústrias mais pequenas que lhe davam apoio.

 A EN10 percorria-as e era a artéria fundamental de circulação. Mais longe, na mesma margem mas separada por braços de rio, ficava a enorme Companhia União Fabril – a CUF- um dos maiores aglomerados industriais da Europa, situada no Barreiro.

 No meio, nesses braços de rio, ficavam algumas das mais importantes Fábricas de Seca de Bacalhau. Acolhiam os barcos da importante frota bacalhoeira portuguesa que pescavam o “fiel amigo” nos mares da Terra Nova. Aqui era secado e salgado o bacalhau que depois seguia para a mesa dos portugueses.

 Saímos por momentos da EN10. Uma das mais importantes era a da Companhia Atlântica de Pesca. Situada mesmo defronte do Seixal, junto à Ponta dos Corvos, está hoje em ruínas mas que nos permitem vislumbrar como era esse processo.

7.1- a caminho da Ponta dos Corvos
A caminho da Ponta dos Corvos

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Ponta dos Corvos

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Companhia Atlântica – edifício principal

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Companhia Atlântica – vista geral

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Companhia Atlântica – suportes para a seca do bacalhau

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Companhia Atlântica – ruinas dos edificios da fábrica

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Companhia Atlântica – edifício principal

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Companhia Atlântica – vista para a Baía do Seixal

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Companhia Atlântica – vigia

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Companhia Atlântica – Seixal defronte

O regresso à EN10, dá-nos oportunidade para visitar o Moinho de Marés de Corroios.

Edifício bonito e bem recuperado, permite-nos perceber como eram antigamente processados – moídos – os cereais que alimentavam a população de Lisboa. A geografia e o conhecimento ancestral do fenómeno das marés jogam aqui – e nos mais de 40 moinhos que populavam a margem esquerda do Tejo – um papel fundamental. Os cereais provenientes do Alentejo – o antigo Celeiro de Portugal – chegavam às margens do Tejo (e também do Sado – mais tarde visitaremos um outro moinho com estas características na margem direita deste rio).

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Moinho de Marés de Corroios

13.1 - Moinho de Marés de Corroios
Moinho de Marés de Corroios

Margens planas, de sapais, facilmente alagáveis pela subida das águas do rio aqui ainda muito influenciadas pelo efeito das marés. Uma comporta de 2 toneladas, fica aberta quando a água sobe. No pleno da maré alta, reservatório cheio, as comportas fecham e a água passa a correr por baixo do moinho acompanhando o esvaziar da maré e pondo a rodar as pesadas mós que irão transformar em farinha os diferentes cereais: aveia, trigo, milho, arroz, paínço.

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Moinho de Marés de Corroios – interior

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Moinho de Marés de Corroios – Interior

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Moinho de Marés de Corroios – Interior

No interior do Moinho de Marés de Corroios podemos vislumbrar todo esse processo pois o seu interior está belissimamente recuperado e assim permite testemunhar como as coisas se faziam antigamente. E digo antigamente porque este moinho foi construído em 1406! Isso mesmo…há 614 anos!!! Merece uma visita, digo-vos.

 De regresso à EN10, passamos os nós de acesso à autoestrada que nos leva à Ponte 25 de Abril ou a caminho do Algarve, no Fogueteiro e dirigimo-nos a Azeitão. Até aqui, a EN10 é essencialmente urbana, sendo que na maioria do percurso assume denominações de ruas ou avenidas, conforme as localidades atravessadas.

Por alturas de Coina, uma peculiar construção chama a atenção.

Trata-se da Torre de Coina mas mais conhecida como Palácio do Rei do Lixo ou também como Palácio da Bruxa! Abandonado e a caminho da ruína, algumas histórias se contam sobre o que teria levado alguém a construir ali algo assim.

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Palácio do Rei do Lixo

Segundo consta, a propriedade pertenceria desde o Séc XIX a um comerciante de Santo António da Charneca chamado Manuel Martins Gomes Júnior. E em 1910 terá mandado construir o inusitado edifício com uma torre altaneira cujo objectivo seria conseguir avistar a propriedade que possuía em Alcácer do Sal. Algo difícil, diria eu….

Este senhor teria o epíteto de “Rei do Lixo” por ter o exclusivo da recolha dos detritos da cidade Lisboa, tendo tido no lixo a origem da sua fortuna. Profundamente ateu e anti-monárquico, chamou à propriedade “Quinta do Inferno” e à curiosa edificação “Torre do Diabo”.

Conta-se também que as fragatas que adaptou para o transporte do lixo terão sido baptizadas com nomes curiosos: Mafarrico, Mefistóteles, Demo, Diabo, Satanás, Belzebú, e outros do mesmo jaez. Curiosa personagem esta!

À aproximação de Azeitão – a silhueta da Arrábida há muito que está no horizonte visual – a mente começa a ter uns pensamentos pecaminosos. Pelo menos para quem gosta de Moscatel e Tortas de Azeitão. É o caso!

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Entrada de V. Nogueira de Azeitão

Mas Azeitão (que é mais que uma única terra, porque temos os Brejos, a Vila Nogueira, a Vila Fresca) tem muito mais que isso. As caves de José Maria da Fonseca são uma visita que se recomenda fortemente. Bem como as da Bacalhôa e cuja visita inclui também o Palácio do Séc. XVI, que lhe leva o nome, e os seus jardins.

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Bacalhôa

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Bacalhôa

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V.N.Azeitão – Palácio dos Duques de Aveiro

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V.N.Azeitão – Fonte dos Pasmados

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V.N.Azeitão – José Maria da Fonseca

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V.N.Azeitão – JMF – Pipas de Moscatel “primeiros meses”

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V.N.Azeitão – JMF – garrafeira privada (interior)

26 - Vila Fresca de Azeitão - Recordação d’ “Os Belos - Transportadora Setubalense”.jpg_7.16_jpg
V.N.Azeitão – Evocação da Transportadora Setubalense – Os Belos

Avancemos pela EN10.

Em Azeitão, deixamos a orientação Norte-Sul e viramos para nascente. O destino é Setúbal depois de atravessarmos uma pequena parte da Arrábida conhecida por Necessidades.

Do Fogueteiro até Azeitão, o percurso tem características sub-urbanas. Acesso a algumas localidades que lhe ficam à margem bem como cruzamentos que nos podem levar a outras paragens, como sejam Sesimbra e a zona das praias, ou o Barreiro e a margem do Tejo que já deixámos para trás. Daqui para a frente, com a excepção da zona da capital do Sado, o trajecto é mais rural.

O nosso objectivo é a EN10 pelo que a passagem por Setúbal é breve. Pouco mais que a travessia da cidade. E esse pouco mais é uma visita à Fortaleza de S. Filipe. Temos assim uma visão privilegiada do maravilhoso enquadramento paisagístico da cidade, com o estuário do Sado e a península de Tróia em frente.

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Setúbal – panorâmica

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Sado e Península de Tróia

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Setúbal – Fortaleza de S. Filipe – pormenor

Pouco depois de Setúbal, visitámos um outro Moinho de Marés. Desta feita o das Mouriscas, situado na margem direita do Sado e cujo interior está excelentemente recuperado.

Tal como no de Corroios podemos ver o modo de funcionamento e a forma como bastantes séculos atrás já a energia proveniente da natureza era aproveitada em proveito do homem. Neste caso, temos também um pequeno e simpático bar com esplanada que permite bons momentos de descanso e de usufruto pleno da natureza. Daqui saem caminhadas pelos sapais do Sado. Interessante para quem gosta deste género de actividade.

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Moinho de Marés de Mouricas

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Moinho de Marés de Mouricas – bar e esplanada

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Moinho de Marés de Mouricas – pormenor do engenho

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Moinho de Marés de Mouricas – comporta

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Moinho de Marés de Mouricas – pormenor do interior

35 - Moinho de Marés de Mouriscas - cereais.jpg_6.85_jpgDaqui saídos, continuamos pela nossa estrada e no sentido nascente. Pouco à frente do km 50 vamos mudar o sentido da marcha. Em Águas de Moura, no cruzamento da Marateca, vamos rumar a norte.

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EN10 – km 50

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EN10 – A partir daqui, rumo a norte

 

Da Marateca até ao Cabo

 A paisagem é tipicamente agrícola. A paragem seguinte vai ser em Pegões. E aqui, saímos da EN10 e viramos à esquerda pela EN4 (direcção Montijo). A antiga Estrada Real que une ainda hoje, o Montijo a Badajoz. Vamos até Santo Isidro de Pegões (a antiga freguesia cuja sede é a aldeia de Pegões Velhos) .

Nos anos 50 do século passado, o Governo de então lançou um projecto através da Junta de Colonização Interna (o léxico da época…) para desenvolver uma vasta zona de terrenos agrícolas através da concessão de parcelas a agricultores (os colonos) que as quisessem cultivar e desenvolver.

A Herdade de Pegões, que contava com uma área de 4700 hectares, foi então dividida em três núcleos, Pegões Velhos, Faias e Figueiras.

Em cada um deles foram construídos casais agrícolas com uma área média de dezoito hectares, dotados de habitação (moradia unifamiliar) e instalações agrícolas (silos, estábulos, pocilgas e nitreiras), beneficiando ainda de sistemas de captação de águas subterrâneas e de superfície (33 km de rede de rega para 240 hectares de regadio, duas barragens e vários furos artesianos). A cada casal correspondiam onze hectares de sequeiro, quatro de vinha, um de regadio e dois de pinhal, tendo ainda direito, por parte da Junta de Colonização, a uma vaca, uma vitela, uma égua, uma carroça com alfaias e um empréstimo de seis mil escudos. Estas facilidades levaram a que, a partir de 1952, cinco anos após o início das obras de transformação da herdade, 206 colonos e respectivas famílias ali se fixassem.

 Os três núcleos contavam ainda com outras infraestruturas, a saber, escolas primárias, centros de convívio, 3 centros sociais de apoio à infância e postos médicos, igreja em Pegões Velhos e nas Faias, cemitério, 3 centros de assistência técnica, casas para os técnicos residentes e uma Pousada para o pessoal técnico exterior.

As moradias e demais estruturas de apoio tinham uma arquitectura característica de inspiração rural. Em contraste, o conjunto de edifícios constituído pela Igreja de Santo Isidro, pelas casas do pároco e professoras e pelas duas escolas do núcleo de Pegões Velhos, sobressaem pelo traço modernista e muito peculiar.

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Igreja de S. Isidro de Pegões

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Igreja de S. Isidro de Pegões

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Igreja de S. Isidro de Pegões

Depois da visita, regressamos à nossa EN10. Aqui, os quilómetros desfilam à nossa frente, rodeados de pinhais e uma ou outra exploração agrícola.

À aproximação a Samora Correia, a paisagem começa a mudar novamente. Nota-se pelo tráfego, pelo cruzar de outras vias importantes, pelos muitos armazéns e algum comércio que bordeja a estrada. Um Burguer King à direita e um McDonald’s à esquerda confirmam….

À saída do Porto Alto, duas notas de relevo: entramos claramente na zona da lezíria do Tejo e aqui se inicia a muito conhecida (pelo menos de quem ouve as notícias de trânsito) Recta do Cabo. Depois de vermos à nossa esquerda a curiosa pose da Ermida de S. José, colocada como que num pedestal e que se deve ao facto de esta ser zona frequentemente invadida pelas cheias do Tejo, passamos pela ruína de um antigo ex-líbris desta estrada: a Estalagem do Gado Bravo. Local famoso e elitista de há algumas décadas é agora um miserável edifício à espera da ruína final.

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Estalagem do Gado Bravo

Como o nome indica, o percurso é aqui uma longa recta, com tráfego intenso e que sempre recomenda cautelas adicionais, até por ter alguns caminhos de serventia local que nela desaguam. Vamos terminar, precisamente no sitio que lhe dá o nome: o Cabo.

Até 1951, aqui terminava a EN10. A passagem para a outra margem fazia-se por barcaças que se adaptavam quer ao transporte de pessoas, quer de veículos com a ajuda de umas pranchas. E, à noite, faziam ainda o transporte do gado que, a pé e acompanhado por homens a cavalo, fazia o percurso de Vila Franca até ao matadouro de Lisboa. Estas barcaças tinham o nome carinhoso de “Gasolinos”.

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Cabo – cais de embarque

Convém referir que até à inauguração da bonita e à época grandiosa Ponte Marechal Carmona (teve a primeira portagem existente em Portugal, que foi desactivada quando finalmente a ponte ficou integralmente paga!), a única travessia do Tejo por ponte, situava-se cerca de 60km a montante, em Santarém.

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Cabo – Ponte Marechal Carmona e Vila Franca

Importava agora, regressar um pouco atrás, ao ponto em que a recta inflete ligeiramente à direita e aponta ao tabuleiro da Ponte Marechal Carmona ou Ponte de Vila Franca como também é conhecida.

A EN10 pela margem direita do Tejo

 Em Vila Franca fizemos o mesmo que em Setúbal. procurámos um local onde desfrutássemos de uma vista panorâmica. Desta feita, uma visita ao Miradouro do Monte Gordo. Daqui temos uma fabulosa vista. De Vila Franca, da Ponte, da Lezíria e…muito mais além. É um dos sítios em que conseguimos perceber a curvatura da Terra. Merece definitivamente uma visita! Nunca o fiz, mas tenho o palpite que será um local extraordinário para ver um nascer do sol…

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Monte Gordo – Panorâmica de Vila Franca de Xira

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Monte Gordo – o Tejo a caminho da Foz

Daqui para a frente, o percurso da EN10 é completamente urbano. As localidades sucedem-se ao ponto de lhes perder o fio à meada. Alhandra, Sobralinho, Alverca, Santa Iria…..até Sacavém.

Regressamos à Cintura Industrial de Lisboa que mencionei atrás. Daqui até Lisboa iremos passar por muitas instalações industriais abandonadas e à beira da ruína. Memórias tristes de um passado que não sobreviveu até aos dias de hoje.

O final aproxima-se, mas ainda havia algumas coisas a merecer visita.

À saída de Alverca, viramos à direita e seguimos as placas que indicam um monumento aos Heróis das Linhas de Torres. Surpreendente! Num miradouro com vista para o Tejo, um pedestal imponente que culmina numa magnífica estátua de Hércules. A simbolizar o feito destes heróis que derrotaram a terceira invasão francesa.

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Monumento aos Heróis das Linhas de Torres

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Alhandra – Vista do miradouro do Monumento

De regresso à EN10, pouco à frente, novamente à direita, subimos ao Sobralinho e temos um magnífico Palácio com frondoso jardim. Recordemo-nos que nos Séc XVIII e XIX toda esta zona estava povoada por quintas reais ou da nobreza, que aqui passavam os seus períodos de férias e de lazer, entre festas e caçadas.

Esta é uma delas, tendo pertencido aos Duques de Terceira. É agora património municipal.

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Palácio dp Sobralinho

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Palácio dp Sobralinho

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Palácio dp Sobralinho

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Palácio dp Sobralinho

Um pouco abaixo, uma torre de relógio. Sem grande valor arquitectónico mas com uma presença interessante no largo central.

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Sobralinho – Torre do Relógio

Novamente na nossa estrada, pouco mais à frente, desta vez do lado esquerdo fica outro ponto de interesse. Junto à base aérea de Alverca, temos o pólo do Museu do Ar.

Espólio interessante do passado da nossa Força Aérea. Se os aparelhos guardados em hangar aparentam estar cuidados e recuperados na sua nova função de nos mostrar o passado dos ases da aviação, já as 3 aeronaves colocadas cá fora à entrada e um pouco mais de atenção pois estão com uma aparência algo decrépita.

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Alverca – Museu do Ar

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Alverca – Aviões…

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Alverca – Museu do Ar – interior

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Alverca – Museu do Ar – interior

Regresso à EN10. Na Póvoa de Santa Iria, novamente do lado direito, subimos um pouco até ao Castelo de Pirescoxe. É uma ruina de um pequenino castelo, mas que está muito bem aproveitada, pois tem no seu interior uma esplanada com um bar que permite usufruir de um local muito aprazível e com um enquadramento peculiar. Ao seu redor, um relvado bem arranjado dá um toque cuidado a este pacato recanto.

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Castelo de Pirescoxe

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Castelo de Pirescoxe

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Castelo de Pirescoxe

E pronto, a viagem está quase a chegar ao fim. Chegamos a Sacavém.

 Antes de terminar, um olhar ao curioso Forte de Sacavém (cuja visita apenas é permitida em breves ocasiões, julgo que por estar ainda em utilização como arquivo militar). Tem a estranha característica de ser um forte subterrâneo e o seu interior desce até ao Rio Trancão. Ficam as imagens do exterior, com um largo fosso à sua volta e do túnel de acesso a partir da Porta de Armas.

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Forte de Sacavém

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Forte de Sacavém – Porta de Armas

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Forte de Sacavém – interior

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Forte de Sacavem – Fosso

Um pouco abaixo, junto ao Trancão, a enorme chaminé que resta da antiga Fábrica de Loiças de Sacavém, talvez a merecer melhor cuidado e mais protecção face ao crescimento imobiliário.

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Sacavém – Chaminé – Fábrica de Loiças

Daqui subimos a Avenida Estado da Índia que coincide precisamente com o último troço da Estrada Nacional 10 e que termina na rotunda que nos permite aceder ao interior de Sacavém antigo, ou, para o outro lado, os acessos a Lisboa.

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Sacavém – Aqui termina a EN10

De Lisboa saímos, a Lisboa chegámos, pela Estrada Nacional 10.

Nesta que foi a mais à esquina das Viagens ao Virar da Esquina!

EN10
Estrada Nacional 10 – De Cacilhas a Sacavém

As motos das viagens (…ao virar da esquina) 2018-20

Ao longo das páginas, todos os artigos publicados no blogue ao longo de 2 anos, com as experiências de conduções de diferentes e variadas motos, compilados no formato de livro digital.

Ao longo de 2 anos foram algumas as motos experimentadas.

Nalguns casos, testes mais longos – o Portugal de Fio a Pavio é um dos exemplos – em que a experiência foi associada a viagens …ao virar da esquina, pois claro!

Noutros, o foco foi exclusivamente a experiência de condução da moto em análise.

Mas sempre com a mesma visão: a do utilizador comum, que pretende utilizar a moto no seu dia a dia, para viajar, para se divertir. Sempre considerando as características específicas e a vocação de cada uma. 

Este livro digital é o resultado de todas essas experiências. O desejo, mais do que fazer um balanço, é que o conteúdo possa ser útil a quem o lê. E, sobretudo, lhe dê prazer! O convite à leitura está feito…

Capa Livro Motos 2018-20

Viagens (…ao virar da esquina) 2018-20

Ao longo de 148 páginas, todos os artigos publicados na imprensa ao longo de 2 anos, desde Novembro de 2018 até Setembro de 2020, compilados no formato de livro digital.

Um convite a rever 2 anos de passeios com muitas fotos e outras tantas histórias com que me fui cruzando…ao virar da esquina.

Bem vindos e boa leitura!

Capa Livro 2018-20

A Globalização começou na EN 2!

“Sacrilégio” gritam uns….”então o Bill Gates e o Steve Jobs, a World Wide Web, e essas cenas todas?
“’Tá maluco!” dizem outros, provavelmente antecipando o ensandecimento intelectual do escriba.

Vamos lá então esclarecer as coisas. Hoje o tema é História. De Portugal e de Castela. Dos Descobrimentos e do domínio do mundo. E o escriba ainda não está maluco….ainda!

E lá vem a pergunta: “e o que tem isso a ver com motos? Com a EN2? Com viagens (bem, os Descobrimentos eram viagens…sim! mas não é por aí…)?

Vamos então à história e à História!

É habitual ouvir dizer que a Globalização começou verdadeiramente com os Descobrimentos Portugueses. Um bocadinho de nacionalismo exarcebado não faz mal a ninguém….

Efectivamente, foi a partir do século XV e desta gesta heróica que um povo acantonado por um vizinho várias vezes mais poderoso de um lado e um Oceano desconhecido do outro, optou por este último (afinal, do outro lado já se sabia que nem bom vento nem bom casamento).

Com a chegada à India por Vasco da Gama, ao Brasil por Pedro Álvares Cabral e ao Extremo Oriente mais tarde (fomos os primeiros Ocidentais a chegar ao Japão e à Austrália). Não esquecer, a chegada de Colombo à América (por equívoco…) em nome dos espanhóis mas com os conhecimentos adquiridos em Portugal.

E com a viagem de circum-navegação do português Fernão de Magalhães se bem que ao serviço da coroa espanhola (e que foi concluída por Juan Sebastian Elcano) o mundo provou ser verdadeiramente redondo. Foi em 20 de Setembro de 1519 – há 501 anos – que Magalhães se fez ao mar em Sanlúcar de Barrameda…se quisermos ser “rigorosos” este foi o primeiro feito que verdadeiramente materializou a Globalização. Não só o Mundo ficou mais “pequeno” porque mais próximo, mas pela primeira vez “o Mundo” era só um! Este foi sem dúvida o começo da Globalização.

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Fernão de Magalhães

Dada esta primeira explicação, porque razão disse atrás que começou na EN2, que já agora, à data ainda nem sequer se vislumbrava a não ser nalguns eventuais troços herdados dos romanos?

Vamos à segunda explicação e temos que andar para trás no tempo: as conquistas e descobertas portuguesas, primeiro no norte de África, depois nos arquipélagos atlânticos e finalmente na costa da Guiné despertaram a cobiça dos nossos vizinhos. Sempre eles! Acabaram por seguir os nossos passos e começaram também a navegar nas mesmas águas. A coisa tinha tudo para correr mal! E correu…

Esta disputa vinha acesa desde os inícios do século de 1400, e quase no final do século a coisa já piava fininho e havia “batatada marítima”. Acresce que no último quartel do século (1 quartel=25 anos) surgiu uma disputa pelo trono de Castela (Espanha ainda não existia como tal mas viria logo a seguir porque alguns dos protagonistas são aqui precisamente os Reis Católicos que promoveram a unificação desse território).

Em 1474 morreu o rei Henrique IV de Castela. Pretendentes ao trono eram a sua filha única D. Joana que estava “prometida” ao rei de Portugal D. Afonso V e a meia-irmã, D. Isabel que estava casada com o rei de Aragão, D. Fernando. Ou seja, estava o caldo entornado! E assim foi.

Tal como era tradição, portugueses e castelhanos envolveram-se num arraial de pancadaria que extravasou para o mar (foi a chamada Guerra da Sucessão). Em terra dominavam os castelhanos (mais os aragoneses) e no mar imperavam os portugueses. Depois de muitos confrontos, finalmente acharam por bem fazer a paz, até porque o impasse não satisfazia ninguém. As negociações e o Tratado foram celebrados em 1479…há 541 anos!

Assim sendo, celebrou-se um Tratado que veio a tornar-se verdadeiramente essencial no presente e futuro de ambos os países porque trouxe a paz e resolveu a crise da sucessão em Castela, permitiu aos Reis Católicos Isabel e Fernando iniciarem o processo de união do que viria a ser a Espanha, D. Joana casou com o nosso D. Afonso V (renunciaram às aspirações ao trono de Castela através de uma adenda ao Tratado chamada Tercerias de Moura) e veio acompanhada de um portentoso dote atribuído também como indemnizações de guerra (o nosso já tradicional jeitinho para sacar uns cobres aos outros…), mas muito principalmente, definiu os limites geográficos do que no mundo conhecido e que faltava conhecer, seria para Portugal ou para os nossos vizinhos. Desde logo, a posse da Madeira, Açores para Portugal e Canárias para Castela, bem como as praças do norte de África.

Mas fundamentalmente, a determinação que abaixo do Cabo Bojador a exclusividade era portuguesa. O ouro da costa da Guiné, da Costa da Mina ou os escravos daí provenientes. Mas também tudo o que depois veio a ser descoberto: caminho marítimo para a Índia e o Brasil. E também a explicação porque Castela apostou em Cristóvão Colombo com um caminho para a Índia por Ocidente…que o levou a esbarrar na América!

Ok! E então? Alguém já por aqui começou a pensar em Tordesilhas… Errado!!! Esse foi mais tarde em 1494.

Alcaçovas1
Imagem do Tratado de Alcáçovas (ou também chamado Paz de Alcáçovas)

Em 1479 celebrou-se na vila alentejana de Alcáçovas, no Paço dos Henriques, o Tratado que leva o seu nome e que promoveu a primeira divisão do Mundo! Entre outras coisas como vimos. O Tratado foi celebrado a 4 de Setembro de 1479 e outorgado pelo Rei D. Afonso V 4 dias depois. A outorga pelos Reis de Espanha ocorreu a 6 de março de 1480…ou seja, completaram-se recentemente os 540 anos.

O Tratado de Alcáçovas foi celebrado num edifício que foi muito recentemente restaurado, o Paço dos Henriques que merece sem dúvida uma visita. E onde toda esta história está documentada e explicada. Além do mais, este Paço serviu também de residência real tendo sido palco ainda de alguns casamentos reais. Rico em História, portanto.

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Paço dos Henriques

Apenas mais alguns comentários que o texto vai longo (mas espero que interessante!).

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Igreja Matriz do Salvador de Alcáçovas

Em Alcáçovas existe uma indústria do mais tradicional que podemos encontrar em Portugal, razão pela qual foi considerada Património Cultural Imaterial da Humanidade atribuído pela UNESCO: a arte do Chocalho e a indústria chocalheira.

No Paço dos Henriques agora renovado, existe também um núcleo documental e um espaço dedicado a esta arte e está previsto que venha a ser instalado um Centro UNESCO do Património Imaterial da Humanidade.

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Paço Real de Alcáçovas

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Quinta das Conchas

E também assinala o facto de por lá passar a EN2.

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Marco simbólico da passagem da EN2 por Alcáçovas – Km 551

Donde surgiu este nosso interesse pelas Alcáçovas?

Pois bem, quando percorremos a EN2 em Abril de 2018, vivemos aqui uma das peripécias mais curiosas da viagem e também ao visitarmos o Paço dos Henriques fomos cativados pela simplicidade do local, a excelência da renovação e a simpatia de quem nos acolheu.

Mais recentemente, a caminho de Évora, tornámos a passar por lá. Uma simpática e muito branca vila alentejana que recomendamos vivamente. E em Janeiro de 2020…novamente por lá passámos, já noite cerrada a caminho de Faro em nova passagem pela estrada mais longa (no Portugal de Fio a Pavio).

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Alcáçovas – primeira vez

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Alcáçovas – segunda vez

E fica logo ali, ao Virar da Esquina, no quilómetro 551 da EN2!

Já perceberam o título desta crónica?

Referências:

– a história do Portugal de Fio a Pavio

– a viagem pela EN2 – de cima a baixo

Viagens ao Virar da Esquina no Facebook

Pelos caminhos de Ibn Darraj al-Qastalli

Escondida no sotavento algarvio, fica uma pequena povoação debruçada sobre a Ria Formosa e que é alfobre de poetas deste tempos muito remotos.

Quando, estudámos a História de Portugal nos bancos da escola, quase não percebemos a existência de um hiato que mal é abordado. Digamos que não se refere propriamente a Portugal enquanto nação, mas sim ao território que ocupamos desde 1143. 

Depois do período de domínio romano, contemporâneo com o início da Cristandade já lá vão cerca de 2 mil anos e cujos testemunhos são conhecidos ao longo do território, e do domínio dos povos bárbaros que lhe sucederam, principalmente por parte dos Visigodos, a Península Ibérica foi ocupada pelos muçulmanos. Num longo período, de 711 a 1492, diversos povos cujo denominador comum era a fé muçulmana – razão pela qual não é correcto falar em domínio árabe, porque tal apenas aconteceu em parte, uma vez que épocas houve em que a dominação era dos povos berberes do norte de África – colonizaram a quase totalidade da Península Ibérica. 

E pode bem falar-se de colonização porque as influências culturais desses quase 8 séculos de domínio (Portugal existe como nação há 8 séculos e picos…) estão em muito do que somos e fazemos. Um exemplo muito básico? Alferrarede, Alcácer, Alcáçovas, Alzejur, Alcoutim….Algarve. A tal partícula “Al” em comum na toponímia tal como na designação que à época era dada ao território dominado: Al-Andaluz! 

Hoje vou contar-vos uma história que remonta a este período e na qual “esbarrei” quando visitava um local, ali no sotavento algarvio, quase a chegar a Espanha que nos esmaga pela sua beleza. 

Uma pequena pérola chamada Cacela-Velha.

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Cacela Velha – panorâmica

E a história de um viajante em Viagens ao Virar da Esquina!

– A história de Cacela-a-Velha –

A pequena fortaleza e as suas muralhas albergam no seu interior meia-dúzia de casa, uma igreja, um poço e um riquíssima história. Que mais do que batalhas passadas recorda sim um passado e presente intimamente ligado à poesia. Talvez a beleza da paisagem seja a inspiração….

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Forte de Cacela

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Forte de Cacela (pormenor)

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Ria Formosa e pormenor do forte de Cacela

Está edificada no cimo de uma pequena arriba fóssil, antiga de 1 milhão de anos, que domina este extremo da Ria Formosa e está separada da ondulação do mar pela ilha-barreira que nos dá uma praia maravilhosa.

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Ria Formosa (vista para nascente)

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Ria Formosa (vista para poente)

Estrategicamente faria parte da linha de defesa da costa, juntamente com as fortificações de Castro Marim, de um lado e de Tavira, do outro. Esta exposição ao mar fez com que desde tempos muito antigos fosse ponto de passagem de comerciantes – gregos e fenícios – ou de piratas que atacavam esta linha de costa.

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Arte moderna nas ruas de Cacela Velha

Presume-se sem qualquer certeza que possa ter sido Cunistorgis, a principal povoação dos Cónios – um povo pré-romano que habitava o que hoje é o Algarve e o Baixo Alentejo (antes do Séc VIII a.C.). 

Certo é que os romanos lhe reconheceram importância. Mas foram os árabes, a partir de 711 da nossa era, quando as tropas árabes e berberes de Tarik Ali Ibn Zyad conquistaram o Al-Andalus, que a promoveram e deram prestígio, ao ponto de ser uma das mais importantes cidades da região sul da Cora de Ossónoba (“distrito de Faro”). O seu apogeu deu-se no Séc X e chamar-se-ia Hisn-Kastala, Qastallat Dararsh, Cacetalate ou Cacila (donde derivaria o actual Cacela). 

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Cacela Velha – Igreja Matriz (Séc. XVI) – fachada principal

Foi conquistada pelos cristãos em 1240, tendo D. Dinis outorgado foral em 1283. No Séc XIV e depois, devido às alterações morfológicas da linha de costa e principalmente pelos ataques de pirataria, a população veio a concentrar-se mais no interior dando predominância à actividade agrícola, ficando o antigo núcleo praticamente habitado pelos seus Senhores.

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Cacela Velha – Igreja Matriz (Séc. XVI)

Bastante afectada pelo Terramoto de 1755, é-lhe retirado o privilégio de concelho em 1775 por D. José I. 

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Cacela Velha – casario

É defronte de Cacela, no areal onde actualmente se situa Manta Rota, que em 24 de Junho de 1833, o Duque de Terceira e as suas tropas desembarcam. Uma pequena força de 2.500 homens que depois de vencer a distância, viria a entrar triunfante em Lisboa assinalando a vitória liberal sobre o exército absolutista de D. Miguel, precisamente um mês depois, a 24 de Julho, dando fim à guerra civil que aqueles travavam contra as tropas liberais de D. Pedro.

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Cacela Velha (pormenor)

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Cacela Velha – Largo da Igreja Matriz

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Cacela Velha – pormenor do casario

– Cacela, Terra de Poetas –

Em 958 nasceu aqui Ibn Darraj, tendo recebido o epíteto al-Qastalli (de Cacela), que viria a ser o maior poeta árabe da sua época.

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Homenagem a Ibn-Darraj al-Qastalli

O seu prestígio era tal que integrava a corte na qualidade de poeta oficial e escritor redactor do Estado Califal do poderoso Almançor pelos finais do Séc X. Percorreria os domínios árabes da Península Ibérica e viria a morrer em 1030, tendo deixado vasta obra que abrange 3 períodos fundamentais da história do Al-Andalus: o esplendor do Estado Califal, a guerra civil que se lhe seguiu e o período dos reinos taifas. 

O poeta foi um dos grandes viajantes medievais do Gharb al-Andalus devido à posição que ocupava na Corte, confessando, através da sua escrita, as adversidades e dificuldades que enfrentara ao viajar:

“tive, em vez de uma longa vida de doçura,

a travessia de vales e montes lamacentos;

em vez de noites breves sob véus

o temor da viagem no seio de infindável treva;

em vez de água límpida sob sombras

o fogo das entranhas queimadas pela sede;

em vez do perfume errante das flores

o hálito esbraseado do meio-dia;

em vez da intimidade entre ama e amiga

a rota nocturna cercado de lobos e de génios

em vez do espectáculo dum rosto gracioso

desgraças suportadas com nobre constância”

 A memória de Ibn Darraj está bem presentes em Cacela.

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Ibn Darraj al-Qastalli na toponímia local

Bem como, muito mais recentes são as presenças de Sophia de Mello Breyner Andresen ou Eugénio de Andrade entre muitos outros. 

Uma pequena localidade mas que serviu e serve de alfobre de inspiração para poetas que por sua vez, também a consagram. É possível observar em muitas das paredes, azulejos com poemas a ela dedicados e que evocam esta fonte de inspiração. 

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Cacela Velha – poesia na rua

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Cacela Velha – poesia na rua

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Cacela Velha – poesia na rua

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Cacela Velha – poesia na rua

Quanto à paisagem e à beleza que os nossos olhos podem contemplar, tanto na conservação do edificado típico, como do areal da Ria Formosa que se estende para nascente e poente, aos nossos pés, as imagens apenas lhe podem fazer uma pequena justiça.

Porque verdadeiramente o que merece é uma visita!

E recordarmos os passos do poeta Ibn Darraj al-Qastalli.

Mais uma Viagem ao Virar da Esquina!

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Em Cacela Velha – A cabine telefónica é uma pequena biblioteca

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