QUEM CONTA UM CONTO.. ACRESCENTA UM PONTO!

O que não falta por aí são histórias, contos, lendas que nos surpreendem, paisagens que nos maravilham e pessoas com experiências de vida que nos enriquecem só por falarmos com elas.

UMA CRÓNICA SOBRE AS CRÓNICAS

Este é um ditado popular muito utilizado quando nos referimos a alguém, geralmente maldizente e propagador de boatos, que tendo tido conhecimento de uma qualquer história – referente a uma terceira pessoa e que não está presente – a reproduz acrescentando sempre uns pozinhos da sua própria criatividade. E geralmente não são abonatórios do ausente visado.

Afinal, a imagem típica daquelas vizinhas coscuvilheiras, estão a ver?

Ao longo destes quase três anos de colaboração com a Andar de Moto nos quais vos vou maçando com relatos de viagens com a regularidade mensal da tiragem da revista, tenho procurado acrescentar alguns pontos às histórias que vou contando.

Obviamente não por coscuvilhice, mas enquadrando-as na dinâmica do trajecto, por vezes dando-lhes uma interpretação própria e sempre utilizando palavras minhas.

Mas afinal como surgem estes relatos?

É o destino que me impõe a procura da história ou, ao invés, um conto ou uma lenda obrigam-me a procurar o local?

AS VIAGENS AO VIRAR DA ESQUINA

Como o nome indica, não procuro viagens longas na distância e no tempo. Não quer dizer que não as faça mas aí o propósito é diverso.

O objectivo é que possam ser simultaneamente gratificantes e facilmente exequíveis. Num fim-de-semana ou numas pequenas férias. Sem rebentar o orçamento também!

Assim sendo, fácil é constatar a primeira dificuldade: enquanto o viajante de longa distância o faz com pouca frequência (uma vez por ano, por norma), traçando um objectivo e estendendo o planeamento e a preparação ao longo do tempo até chegar o grande momento da partida, aqui estas fases são naturalmente mínimas…quase rotineiras.

Na minha opinião, qualquer viagem assenta na resposta a três perguntas que devemos fazer a nós próprios:

  • O SonhoOnde quero ir?

O destino pode ser qualquer um: um local recomendado por amigos, uma paisagem de sonho vista num programa de TV, uma estrada fantástica que alguém comentou, um restaurante perdido no meio de nenhures que tem uns petiscos divinais….ou “apenas” uma daquelas fixações que surgem não se sabe de onde mas que nos martelam a cabeça persistentemente.

A minha não é segredo: o Cabo Norte! Hei-de lá ir…brevemente, que “o tempo urge”!

  • A CapacidadeConsigo fazê-lo?

Aqui entramos no domínio da realidade: tenho orçamento? tenho condição física para o desafio? a moto é adequada? tenho o equipamento necessário? posso ir sozinho ou devo levar companhia? e nesse caso, arranjo?

Todas estas perguntas têm uma resposta em cada momento e não têm que ser todas afirmativas. Basta que o sejam à hora da partida.

  • A Vontade – Algo me impede de o fazer?

Aqui não se trata da resolução dos pontos anteriores.Tem a ver com o nosso íntimo. Se tenho vontade de o fazer, porque não o fiz ainda? Porque hesito?

Acho que todos conhecemos aquela fase geralmente no Inverno, em que nas rodas de amigos começamos a antecipar as próximas conquistas…geralmente as não concretizadas nos anos anteriores, recicladas e acrescentadas de uma ou outra novidade. E afinal o que nos impediu? A família? O trabalho? O receio?…..

As razões serão do foro estritamente pessoal e não cabe aqui explorá-las.

Por isso esta é a questão cuja resposta é mais difícil. E mais complicada de ultrapassar.

É evidente que em pequenas viagens, todas estas questões não se colocam…ou são facilmente ultrapassadas. Uma grande vantagem e o benefício evidente de as podermos fazer, repetir…e repetir!

Mas a questão fundamental é comum: onde ir?

COMO ESCOLHO OS MEUS DESTINOS

Julgo que esta é a parte mais divertida – excluindo a viagem, claro – porque no momento zero, a ideia do destino surge por vezes donde menos se espera.

Devo dizer, como nota prévia, que tenho 2 defeitos grandes (quer dizer, de certeza que tenho mais!): tenho pouco espírito aventureiro – detesto surpresas e procuro controlar os acontecimentos o mais possível – e sou um péssimo gastrónomo – quando estou a andar de moto é frequente esquecer-me das refeições e só dou por isso quando a fraqueza aperta!

Ou seja, quando saio de casa sei para onde vou. Se não souber, assim tipo ir “à sorte”, dou a volta na primeira rotunda e volto para casa. Simplesmente porque ir sem objectivo não me faz sentido.

Mas atenção! Isto sou eu. Sei de quem o faz e se diverte imenso… Chegaria a ter inveja, não fosse esta um pecado mortal. E eu acho que a vista do céu é mais bonita que a do inferno (embora haja quem sugira que este será mais divertido….) portanto vamos lá evitar este em concreto.

Quanto aos destinos “alimentares”, vou se me levarem. Sou incapaz de tomar a iniciativa de ir de propósito. Mesmo que seja para um fabuloso ensopado de enguias, um belo naco de vitela ou uma saborosa sopa da pedra. Ou uma simples bifana…

Mas então como acontece?

Vou contar-vos alguns exemplos

1. “Tem que ir a Brotas!”

Muito no início, quando os Solares de Portugal decidiram fazer o favor de me apoiar, aconteceu um diálogo que nunca mais esqueci e que vou reproduzir:

-“Tem que ir a Brotas!

Fiquei surpreendido. Conhecia terra há muito, por lá passar antigamente quando ia do Alentejo onde morava para a Beira das raizes familiares e nada me sugeria que tivesse algo digno de nota para ver. Mais uma terra anónima pelo caminho…

-“Brotas? Sei onde fica. Mas o que tem de especial?” respondi.

-”Brotas tem um santuário de culto mariano que data de há alguns séculos. Muito, mas mesmo muito, anterior a Fátima.

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Santuário de Nossa Senhora de Brotas
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Interior do Santuário de Nª Sª de Brotas

Não sou religioso mas confesso que fiquei curioso. Algo ancestral e “perdido” no meio do Alentejo?

Não perdi muito tempo a ir até lá. Na realidade, a expectativa foi amplamente superada. Chamei-lhe “Brotas – segredo escondido do Alentejo”

A história assenta, como tantas e tantas outras, numa lenda.

Conta-se que por volta de 1400, um pobre aldeão pastoreava a sua vaca quando ela despencou por um barranco, partindo uma perna. Sendo o único sustento da sua família, logo o pastor antecipou a sua desdita, pois a solução seria matar o animal para lhe poupar o sofrimento.

Foi nesse momento que lhe apareceu a Virgem Maria e lhe disse que se ele fosse chamar os outros aldeões e prometessem construir uma capela em Sua homenagem, ela curaria a vaca.

Enquanto ele foi a correr, a Virgem corta o seu próprio braço direito para substituir o membro partido do animal. Quando regressou, o pastor viu a sua vaca restabelecida. E ele e os seus vizinhos cumpriram a promessa.

Aí se iniciou a devoção a Nª Sª de Brotas. Todas as imagens da santa têm o braço direito amputado.

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Imagem de Nª Sª de Brotas

 Que tem mais três pormenores curiosos:

– o culto foi ganhando dimensão e noutras povoações mais ou menos vizinhas foram criadas confrarias de devotos que faziam romarias periódicas até Brotas. Ao ponto de cada uma construir a sua casa. Estas casas eram depois utilizadas e partilhadas pelas confrarias para reposo dos romeiros. Chama-se hoje Casas de Romaria, estão recuperadas e estão disponíveis a quem queira visitar Brotas;

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Casas de Romaria e Santuário de Nª Sª de Brotas

– ao longo do tempo e, principalmente com os Descobrimentos, devotos de Nª Sª de Brotas espalharam-se pelos quatro cantos do mundo. E levaram o culto consigo. Na Igreja – Santuário é possível encontrar imagens oriundas de paragens longínquas como o Brasil ou a Índia.

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Imagem vinda da Diáspora

– ainda hoje, os habitantes de Brotas acreditam na benção de Nª Senhora. Todos os naturais desta terra alentejana que, no Séc XX, foram mobilizados para guerras – I Grande Guerra ou Guerra Colonial – sobreviveram e apenas um chegou ferido e por acidente.

Uma das características das histórias que procuro e dos locais onde me dirijo é que sejam pouco conhecidas. Tento fugir dos clichés ou dos locais que toda a gente conhece.

Assim, nunca falei de Lisboa – a minha terra natal – ou do Porto – que mal conheço – mas que é destino de tantos. Ou também, porque nunca falei de uma terra de que gosto muito, mas sobre a qual é difícil contar algo sem cair no que todos conhecem: Évora. Ou talvez ainda não tenha encontrado aquela história escondida…

2. O Guimarães das Duas Caras

E isso recorda-me quando no início de 2020 me dirigi a Chaves para iniciar o “Portugal de Fio a Pavio” (percorrer a EN2 num só dia como desafio próprio e teste de uma nova Honda Africa Twin). Deparei-me com uma história pouco conhecida e localizada em Guimarães… e lá está! Uma daquelas terras sobre a qual é difícil falar sem recorrer ao chavão do “Berço da Nacionalidade”, às lutas de D. Afonso Henriques com sua mãe D. Teresa ou à imponência do Castelo altaneiro.

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Castelo de Guimarães

Detive-me na cidade minhota e fui à procura do Guimarães das Duas Caras. Um personagem que tem a sua estátua no topo do medieval edifício dos Paços do Concelho localizado no Largo da Oliveira.

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Largo da Oliveira – Monumento à Batalha do Salado

E a história (algo macabra…) conta-se brevemente: quando a batalha de Alcácer-Quibir se encaminhava para o seu fatal destino, alguns nobres percebendo a inevitabilidade resolveram fugir levando com eles El-Rei D.Sebastião.

Encaminharam-se para o deserto que percorreram dias a fio, sem comida nem água. A certa altura, já desesperados, resolveram tirar à sorte qual deles se sacrificaria em proveito dos restantes (a condição real já não fazia sentido nem dava privilégio) e a má sorte caiu em D.Sebastião que assim… serviu de refeição aos restantes.

Quis o destino que no dia seguinte chegassem perto do mar e um barco que por ali passava os acolhesse com a promessa de os trazer de volta (o que seria um problema e tiveram que jurar nunca contar o sucedido porque senão seriam acusados de traição!). Mas uma tempestade afundou o navio e só um sobrevivente restou: o dito Guimarães (de nome e de terra de origem).

Herói se tornou por tal feito mas o segredo ficou com ele. Não podendo mais guardar para si coisa de tal dimensão resolveu contá-lo em confissão ao Padre Inácio Laranjo.

E assim, o Guimarães viveu e morreu como herói ao ponto de a população lhe querer erigir estátua em homenagem. Não podendo revelar o segredo abjecto, restou ao padre fazer com que ela fosse o que é hoje: a figura do Guimarães mas com um segundo rosto situado na zona do abdómen. O rosto de D. Sebastião, comido pelos fugitivos da batalha perdida.

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Paços do Concelho – Estátua Guimarães Duas Caras
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O Guimarães Duas Caras

Percebem de onde vem a expressão “Ter o Rei na barriga”?

 3. “Já conhece Oriola?”

A grande vantagem das redes sociais é a capacidade de interacção com quem nos lê ou vê. Os comentários são sempre um bom feedback. E por vezes, acontecem coisas inesperadas.

Um dia, uma seguidora da minha página de Facebook, colocou o seguinte comentário numa crónica sobre o Alentejo, cujo tema em concreto já não recordo. E dizia só e simplesmente isto:

 -“Já conhece Oriola?”

Respondi ignorantemente: -“O que é Oriola? Onde fica?” (triste figura, diga-se)

Fiquei de boca aberta. Acreditem. Nunca tinha ouvido o nome de tal terra apesar de me orgulhar de conhecer bem o Alentejo onde vivi longo tempo e onde sempre regresso pois é o meu refúgio. Oriola?

Fui procurar a localização. E a história. Entretanto, a seguidora atenta enviou-me umas fotos da paisagem e restou-me prometer que lá iria logo que possível. Assim foi.

É uma pequena aldeia alentejana, entre Viana do Alentejo (onde há muito queria ir) e Portel, e que fica nas margens da barragem conhecida como do Alvito mas cujo verdadeiro nome é Barragem de Albergaria dos Fusos.

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Oriola – Monumento ao 25 Abril
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Oriola – Ruas brancas

A terra pouco mais tem do que a tipicidade do branco casario alentejano, a calma que caracteriza estas paragens e uma beleza paisagística notável.

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Oriola – Chegámos ao fim da estrada (albufeira da barragem)

Quanto à minha seguidora a quem estou grato, não cheguei a conhecê-la – ainda! – mas está combinado um encontro num destes dias. Merece relevo o facto de ter abandonado a vida citadina e hoje se dedicar a promover a sua terra – registem o nome Oriola para não fazerem a mesma figura que eu fiz – e os seus produtos típicos.

Se por caso tropeçarem na expressão tão tipicamente alentejana “Nã Te Moas!” já sabem: é de Oriola que se trata e o petisco é saboroso. Ou melhor…não tropecem e vão procurar!

4. O meu nome é Arrábida, Serra da Arrábida!
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Serra da Arrábida

Sou, desde há muito, fã incondicional dos filmes do James Bond. Vejo-os e revejo-se sempre com enorme prazer…apesar de já saber o que se vai passar ou até recitar as falas em simultâneo.

Há um filme, datado de há 50 anos, chamado “Ao Serviço de Sua Majestade” que tem algumas peculiaridades: foi o único protagonizado por George Lazenby, passa-se praticamente todo em Portugal e é nele que o agente secreto conhece a Condessa Teresa (Tracy) di Vicenzo, com ela casa…e logo fica viúvo.

O filme começa com a descida da Serra de Sintra em direcção ao Guincho, onde James Bond conhece a futura esposa, o romance e a aventura vai-se desenrolando entre o Estoril, a Baixa Lisboeta, o Ribatejo e a zona de Sesimbra e Arrábida. É precisamente aqui, na estrada da serra que percorre o seu cume e a descer já para o Convento que o carro onde o casal viajava em núpcias é baleado por uma sequaz do vilão Ernst Stavro Blofeld. E Tracy morre.

Este foi durante décadas considerado o “filme maldito” da saga Bond mas é hoje um dos que tem o epíteto de filme de culto. Escusado será referir que Ian Fleming, o criador de 007, também ele antigo espião mas na vida real, escreveu o primeiro livro em Portugal, no Estoril. Certamente inspirado pelo ambiente que aí se viveu durante a 2ª Guerra Mundial.

Bem, perguntam vocês: “o que tem isto a ver com viagens?”.

Pois outra das minhas paixões e local onde vou recorrentemente é a Serra da Arrábida. Daí a misturar as duas coisas foi um passo.

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Palácio da Comenda de Monguelas
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Palácio da Comenda- antes da reconstrução

 Depois, a crónica final foi ainda completada com a história muito curiosa e interessante do Palácio da Comenda de Monguelas (então em ruínas mas actualmente recuperado) ou do forte da 7ª Bataria de Artilharia de Costa, património deixado ao Deus dará por um Estado que muito mal cuida do que é de todos, e que tem uma vista sobre o estuário do Sado, Setúbal e Tróia de enorme beleza.

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Forte 7ª Bataria
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Vista do estuário do Sado e 7ª Bataria
A ESCOLHA DO CAMINHO

Pelos exemplos se pode ver que a escolha de um destino pode ter origem nas coisas mais variadas. Basta um detalhe que me capte a atenção e me faça ir à procura. Que me estimule a curiosidade e tenha algo para contar.

Consequência lógica é que, na minha mente, uma parte importante da história que depois contarei – seja na Andar de Moto ou nas redes sociais – já está esboçada.

Falta o segundo passo: a escolha da rota. Porque nas viagens de moto não é o caminho mais curto que interessa. Duas palavras definem o que então procuro: “sinuoso” e “montanhoso”.

Traduzindo, quero estradas com curvas e contra-curvas, com subidas e descidas. Ou seja, as nossas belas (e muito frequentemente mal tratadas) estradas nacionais e municipais.

O primeiro passo é abrir uma daquelas vetustas instituições caídas em desuso pelas novas tecnologias: o velhinho Mapa das Estradas.

O Google Maps e outras ferramentas do género são óptimas para vermos o detalhe. Mas a “big picture” só através de um belo mapa estendido na mesa da sala!

Aí se começa a esboçar a rota. Seja porque tenho o primeiro vislumbre de que estradas quero percorrer, como também quais os lugares por onde vou passar. Que também têm a sua história própria e quantas vezes tão ou mais interessante.

Quais as fontes a que recorro habitualmente, para lá dos mapas?

O Google e a Wikipédia são óptimos auxiliares para começar a delinear o roteiro.

Também a literatura portuguesa. Nos clássicos, de Ramalho Ortigão – “Pela Terra Alheia” – a José Saramago – “Viagem a Portugal – não esquecendo o “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett. Ou outros autores contemporâneos, com o devido cuidado de procurar não reproduzir o que já foi feito. Revistas de viagens são também uma boa fonte de recolha de informação.

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Ferramentas para preparação de viagens – Mapas, livros, gps, computador

Mas sobretudo….estar sempre atento no dia a dia. Porque a ideia pode vir de um noticiário, de uma entrevista ou até, quem diria, de um daqueles programas “pimbas” que animam as tardes televisivas e que num momento de zapping nos podem acordar os sentidos.

Na fase em que o trajecto está esboçado, é fundamental dar-lhe um formato. Chama-se GPX e é a extensão que identifica um ficheiro pronto a ser carregado no GPS. Constrói-se passo a passo através de programas a isso destinados. No meu caso uso habitualmente o site AllTrails. No final exporto para o TomTom Rider. E pronto…

Construído o roteiro e deixando algum espaço à inspiração do momento, falta depois montar a logística: moto pronta, alojamentos se for o caso (tanto pode suceder que leve a reserva feita como fazê-la quase no momento graças às modernas tecnologias que muito facilitam neste capítulo). E a bagagem estritamente necessária, naturalmente!

A CAMINHO

Esta é a fase em que respondemos afirmativamente às três questões: sei onde quero ir, consigo fazê-lo… e nada me impede!

Como referi algures aí atrás, não gosto de surpresas. É uma questão de feitio… Por isso tento planear os timings da viagem. Sem excessos de rigor mas de forma a permitirem atingir os objectivos sem correrias.

Uma lição já aprendi: parar nos pontos de interesse, nos pré-definidos e nos que vão surgindo demora algum tempo; se lhe adicionar o tempo para fotografar (escolha de planos, da melhor luz, evitar transeuntes, etc.) a demora duplica; e se a tudo isto acrescentar filmagens, então o consumo de tempo cresce exponencialmente. Se não for devidamente antecipado…o final do dia tende a ser dramático! Falta tempo e algo vai ficar para trás….

Por outro lado, o excesso de planeamento retira espontaneidade e prejudica as interacções com as pessoas dos locais por onde passamos. E isso é demasiado prejudicial para o resultado final.

Ou seja, mais vale chegarmos ao final do dia com tempo de sobra que poderemos aproveitar para descansar ou procurarmos algo de diferente…e no fundo desfrutar também do caminho. Porque de moto, o caminho é essencial para o prazer da viagem. Por isso o escolhemos com tanto cuidado.

E DEPOIS?

Chegado a casa, “desmontada a loja”, é importante sistematizar o material recolhido – fotos, filmes, apontamentos – e passar à fase solitária da escrita. A escolha das palavras que consigam transmitir as sensações vividas. Como se o leitor tivesse viajado connosco “à pendura”…

Se se consegue? Quero acreditar que umas vezes sim e outras nem tanto. Seja como for…venham daí! Porque o importante é sair porta fora, montar a moto e seguir viagem. Pode ser só ao virar da esquina ou mais além.

O que não falta por aí são histórias, contos, lendas que nos surpreendem, paisagens que nos maravilham e pessoas com experiências de vida que nos enriquecem só por falarmos com elas.

‘Bora lá!

 

(crónica publicada originalmente na revista Andar de Moto  #42 – Novembro 2021)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Brotas – o segredo escondido do Alentejo!

Fui até Brotas à descoberta de uma lenda e de um milagre que deu origem a um culto secular.

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Cedinho e céu cinzento. Olhei lá para fora e ….borrasca anunciada! A previsão meteorológica dizia o mesmo. Pouco animador para quem se ia lançar à estrada… Mas, motard que é motard, é de aço…preferencialmente inoxidável! A rota traçada e os compromissos assumidos mandavam avançar. Assim foi!

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O destino da jornada era Brotas. E quase sempre que o referia, alguém perguntava “Brotas? Onde fica isso?…”

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Trata-se de uma pequena aldeia (pouco mais de 200 habitantes), freguesia actual do concelho de Mora e integrava o antigo concelho das Águias que teve foral no séc XVI (1520). Terras antigas, portanto… Mas, igualmente importante (para a terra e para esta história) o facto de ficar situada entre Mora e Montemor-o-Novo, em plena Estrada Nacional 2, a meia dúzia de quilómetros do Ciborro e do marco 500 dessa estrada.

Quando pela primeira vez me referiram que Brotas tinha uma história interessante e pouco conhecida fiquei surpreendido. Tinha lá passado há um ano atrás, durante a viagem pela EN2. E, se me recordava bem disso (com fotos alusivas e tudo)…já a existência de um Santuário e ainda por cima antiquíssimo, tinha-me escapado completamente. Falta a que importava pôr cobro.

E se a história é interessante!!!

Referir ainda que o alojamento que me esperava – as Casas de Romaria – está profundamente ligado a toda a história do local. Porque é o próprio local!

Literalmente iria estar imerso na história do Santuário de Nª Srª de Brotas, no seu culto centenário e na forma como o mesmo se expandiu.

A viagem – de Lisboa ao Fluviário

A viagem começou enevoada e a prever rega lá mais para a frente.

A primeira paragem foi em Coruche. Uma visita prometida a um amigo e uma constatação…acho que nunca lá tinha entrado. Uma falta a remediar um destes dias.

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Olá, cafézinho, meia de conversa, um abraço…e ala que se faz tarde! O resto da conversa seria mais tarde…lá para o jantar…

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Segui a EN251 e cheguei ao Couço. Sem paragem, apenas uma volta pela vila e depois rumo a Montargil.

O Alentejo é assim…

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O destino era a barragem e rever a vila que lhe dá nome. Situada no cimo de uns montes fronteiros à albufeira, deveria ter uma vista interessante….deveria, mas não tem. Fica uma sugestão…façam um miradouro com uma vista bonita, promovam e, se calhar, o comércio local agradece. E os viajantes também!

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Ainda assim, houve espaço para algumas fotos para registar o momento. Também junto à albufeira e ao paredão.

Depois, rumo a Mora. Pela EN2, que iria ser uma constante nestes dias, pois por diversas vezes a cruzei ou percorri.

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Mas um pouco antes de lá chegar, viragem à esquerda, em direcção ao Fluviário e ao Parque Ecológico do Gameiro (para lá de muito bonito, vim depois a saber que é um paraíso para a pesca de rio, inclusivamente com competições internacionais).

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Fluviário de Mora

Fica em Mora, perto de Cabeção e integrado no Parque Ecológico do Gameiro. Que tem uma riqueza paisagística e natural extraordinária. A merecer uma visita mais detalhada por si só.

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O Fluviário é um aquário público, dedicado aos ecossistemas de água doce, ao seu estudo e à importância que têm no que se refere à preservação da biodiversidade.

É constituído por um conjunto de aquários e espaços envolventes e permite a observação de diferentes espécies de fauna e flora oriundas de rios e lagos. Através da exposição de habitats do percurso de um rio – paradigma de um rio Ibérico – desde a nascente até à foz, é possível conhecer diversas espécies dos rios de Portugal, entre elas, alguns endémicas da Penísnsula Ibérica. Já na galeria de habitats exóticos, é possível conhecer espécies da bacia hidrográfica do rio Amazonas (uma anaconda!), dos Grandes Lagos Africanos do Vale do Rift, entre outras.

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O Fluviário de Mora é, pelas suas características de frescura e calma, um excelente intervalo para uma jornada na estrada.

A viagem – continuação – do Fluviário até Brotas

Continuei. Primeiro por uma estrada municipal e depois pela N251.

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Passei Pavia, onde percorri algumas ruas do seu centro, uma vila tipicamente alentejana onde predomina de forma absoluta o branco das paredes das suas casas térreas.

Depois, segui pela N370 até Arraiolos.

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Famosa pela sua indústria dos tapetes – a rotunda por onde entrámos mostra claramente essa influência – o objecto de visita foi o Castelo. Bem original pela sua planta circular.

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Dele se tem uma vista sobre o casario da vila. Constatar também que o estado de conservação não é o melhor, estando algo degradado nuns pontos e pouco cuidado no geral. Talvez isso e alguma imperícia própria e deu-se o único percalço da viagem. Condutor e mota foram parar ao chão. Sem danos de monta, felizmente. Como se costuma dizer, quem anda à chuva molha-se. O que no caso, era bem verdade: no caso figurado e também literalmente!

A disposição para visita mais detalhada reduziu-se significativamente. Uma volta pelas ruas mais centrais e segui caminho, até porque o objectivo era chegar a Brotas ainda relativamente cedo para logo conhecer o mistério do culto da Nª Srª de Brotas.

Ainda antes, por uma estrada municipal que me levaria novamente até à EN2, passei S.Pedro da Gafanhoeira e S. Geraldo. Já na nossa estrada, meia dúzia de quilómetros e estava no famoso quilómetro 500 da EN2! No Ciborro.

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Tiradas as fotos da praxe, mais uns poucos minutos de estrada, e a jornada estava concluída, por agora.

Cheguei a Brotas.

E a primeira constatação é que neste ponto a estrada é bem estreita uma vez que se faz em circulação alternada (por semáforos). Vim depois a saber que a estrada, quando foi construída, rasgou a povoação ao meio a ponto de algumas casas terem sido destruídas para a passagem da via. Conhecendo depois um pouco da história da aldeia e o seu desenvolvimento, fácil se torna perceber que a actual morfologia é bastante diversa daquela original e posterior ao desenvolvimento da povoação em função do Santuário. Já lá vamos…

Brotas – a História

O local hoje chamado de Brotas pertencia aos domínios da vila de Águias que foi sede de concelho a partir de 1520. Todavia, nesta altura já teriam ocorridos os “factos” que levaram ao posterior desenvolvimento de Brotas e à decadência de Águias.

A morfologia do terreno é importante. Assim, estamos perante um pequeno vale bastante cavado e com paredes íngremes (embora não muito altas), quase uma espécie de buraco. Pois foi precisamente aí que nos principios dos anos de 1400, um pastor pastoreava a sua vaca. Este animal era precioso porque assegurava o sustento do pastro e dos que lhe eram próximos. Todavia, a dada altura o animal precipitou-se pelo barranco e veio cair na parte mais baixa do tal vale. Partiu uma pata que teria que ser cortada e certamente provocaria a sua morte. E com ela, a vida já miserável do pobre pastor acabar-se-ia! Face a tal desdita, prostrou-se e implorou pela salvação.

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E então dá-se o milagre. Nª Senhora aparece aos olhos do pastor e face ao desespero e aflição do mesmo, logo ali amputa o seu braço direito que substitui o membro aleijado da vaca. Esta recompõe-se e recupera salvando a vida e o sustento do pastor e dos seus. Neste momento nasce a devoção a Nª Srª, a partir daqui chamada de Brotas e que em todas as representações se apresenta sem o braço direito.

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É erguida em data anterior a 1424 uma ermida em sua honra, culto que se acentuou posteriormente determinando a ampliação do templo original e a criação de um núcleo urbano adjacente, dando origem ao Santuário de Nossa Senhora das Brotas. O declínio da vila das Águias ocorreu progressivamente, à medida que o lugar de Brotas se ia tornando uma povoação mais importante, levando a que, em 1535, o Cardeal-infante D. Afonso, Bispo de Évora, lhe concedesse independência eclesiástica, transferindo a sede paroquial de Águias para Brotas.

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Em frente ao templo estende-se a Rua da Igreja, cujas edificações de dois pisos foram erguidas como hospedaria para as várias confrarias de fiéis. Muitas dessas casas – Casas de Confraria – ainda hoje apresentam as lápides das confrarias respetivas (como a de Setúbal, Mora, Lavre, Cabeção ou Cabrela). E, recordando o que atrás foi dito sobre a morfologia do terreno, a rua principal, a Rua da Igreja, desagua o pequeno largo onde está situado o Santuário, ficando o casario como se de um anfiteatro natural se tratasse.

Esta é a parte da aldeia a que o povo chama de “Aldeia Velha”. A partir da primeira Guerra Mundial, os proprietários de uma herdade fronteira à “Aldeia Velha”, formaram uma outra aldeia a que os moradores chamaram de “Aldeia Nova”.

O Concelho das Águias ou Brotas foi extinto em 1834 e anexado ao de Mora. Quando o de Mora foi extinto em 1855, Brotas passou para o de Montemor-o-Novo, onde se manteve até 1861, ano em que o Concelho de Mora foi restaurado.

Com os Descobrimentos nos finais do século XV e nos seguintes que originaram a diáspora portuguesa, naturalmente que o culto também foi levado para além mar. Há registos da sua prática na Índia (inclusivamente existe uma imagem proveniente da Índia no Santuário) e em diversos locais do Brasil.

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Mais recentemente, dois factos – ou milagres – que revela a protecção que os crentes acreditam existir relativamente à sua terra: nos dois conflitos armados onde homens de Brotas se fizeram militares durante o Séc. XX – 1ª Grande Guerra e Guerra do Ultramar – nenhum por lá ficou. Todos regressaram a salvo e apenas no primeiro conflito um regressou ligeiramente ferido. E este facto/milagre é motivo também para a sua referência em pleno Santuário de Nª Srª de Brotas.

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De referir ainda a riqueza interior do Santuário, nomeadamente a sua azulejaria:

Brotas e as Casas de Romaria

Referi acima que do Santuário sai a Rua da Igreja. Nela se situam a maioria das Casas de Confraria. Estas casas, em que cada uma leva o nome da origem das confrarias de devotos, serviam para albergar os romeiros que vinham prestar culto à Santa.

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Os tempos eram outros e as deslocações faziam-se muito lentamente. De Setúbal por exemplo, media-se em vários dias o tempo de caminhada. Por isso, também quando chegavam, para lá do descanso necessário, também o culto se prolongava. E era nestas casas que os romeiros se alojavam. Vinham por confraria e quando uma abalava, logo outra vinha ocupar o seu lugar e as casas.

As Casas de Romaria são uma unidade de Turismo em Espaço Rural que através da recuperação de 6 destas Casas de Confraria permite aos seus visitantes usufruirem em simultâneo dos confortos da vida moderna mas instalados em habitações com 600 anos de história. Casas tipicamente alentejanas, de branco caiadas e com as suas riscas coloridas, que mantém a traça original e estão decoradas de forma singela com os artefactos típicos que ilustram a vida nesta região.

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Ficar numa destas casa – no caso, a da Confraria de Palmela – é partilhar com o conforto do Séc. XXI, a vivência histórica de uma profunda devoção hexacentenária!

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E à noite, é mágico escutar o silêncio dos campos que nos rodeiam!

À descoberta de Mora

Entretanto, aproximava-se o final do dia. E o jantar em Mora, que tinha ficado alinhavado em Coruche ao início do dia, confirmou-se.

Na Africa Twin, fiel companheira de viagem sempre pronta, agora aligeirada das bagagens, lá percorri a dúzia de quilómetros que separam Brotas da sede de Concelho. Entretanto, se durante o dia apenas tinham ocorrido alguns pequenos períodos de chuviscos, agora a coisa estava mais intensa. Mal sabia eu que dali para a frente, nesta viagem, isso seria uma constante.

Em Mora, o meu anfitrião e amigo, proporcionou-me uma visita guiada pela vila e arredores, tendo ficado na retina (e nas fotografias) a curiosidade do Cromeleque de Mora (ou Cromeleque do Monte das Fontaínhas) que atesta a ancestralidade do povoamento desta região e cujo património megalítico deu origem ao respectivo Museu que se localiza precisamente nesta vila.

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Também o Açude na Ribeira da Raia e que está na origem da Pista Internacional de Pesca Desportiva, importante factor de desenvolvimento económico pelas competições que permite e pelo renome internacional.

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Quanto ao jantar….pois fica a recomendação: Solar dos Lilases (será conveniente uma marcação prévia) é um local a repetir. Pela simpatia com que fomos recebidos e também pela excelência do que comemos: lagartos de porto preto com migas de espargos (que estavam de comer e chorar por mais…)!

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E era tempo de finalmente regressar a casa na verdadeira acepção da palavra pois de uma Casa de Confraria (a de Palmela) se tratava – para uma noite descansada, uma vez que no dia seguinte a viagem continuava.

Começar o dia em Brotas

Acordei cedo como habitualmente, e ainda não se via vivalma nas ruas (nesta parte da povoação, onde quase ninguém mora) já eu andava a completar o acervo fotográfico.

Foi quando me cruzei com um jovem caminhante com os seus batons de marcha que saía de uma outra Casa de Confraria. Imagem curiosa e inesperada. Mas algo familiar…

Pouco depois, encontrámo-nos no pequeno-almoço. Tratava-se afinal do Afonso Reis Cabral, herói caminhante, que andava a percorrer a EN2 a pé e ao mesmo tempo deliciando-nos com o seu relato diário de viagem na página de Facebook (que eu aliás vinha seguindo).  A jornada tinha começado havia cerca de 2 semanas atrás em Chaves, neste dia a meta seria Montemor-o-Novo e iria chegar a Faro cerca de uma semana depois. É obra! A sua simpatia, a coragem para realizar uma empreitada destas ainda por cima desafiando os elementos pois quer a chuva deste mesmo dia (e de outros) quer alguns dias de calor algo exagerado para a época não lhe facilitaram a tarefa. Mas, e pelas suas crónicas isso foi sendo evidente, uma verdadeira experiência de vida e principalmente de contacto humano com todos aqueles com que se foi cruzando. E o seu talento para a escrita que nos fez acompanhá-lo com redobrado interesse. Acreditem…é um nome a reter! E fica a sugestão, vão ao Facebook e revejam as crónicas do Afonso. Vale a pena!

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Agora uma referência muito especial. Os meus anfitriões nas Casas de Romaria, a Maria e o Pedro, genuinamente simpáticos e verdadeiramente apaixonados pela sua terra – e isso foi por demais evidente na visita em que a Maria me levou a conhecer o santuário e os seus recantos, todos com alguma história para contar, a lenda do milagre de Nª Srª de Brotas, as Casas de Confraria que com muito trabalho e bom gosto têm vindo a recuperar e também as ruas da Aldeia Velha, tudo temperado com o profundo conhecimento das suas raízes – acolheram-me da mesma forma como quem recebe em sua casa um amigo de longa data. O quase imediato tratamento por tu foi sinónimo disso mesmo: estava ali como amigo! E é tão bom ser assim recebido…

O regresso à estrada

A viagem continuava. Debaixo de uma morrinha irritante lá me fiz à estrada rumo a Mora novamente. Percorridos 3 ou 4 quilómetros, vislumbro uma pesoa que caminhava na estrada. Afinal iria cruzar-me novamente com o Afonso. No dia anterior tinha concluido a sua caminhada no quilómetro 480 da EN2 (entre Mora e Brotas) pelo que foi ali que reeniciou o percurso. O rigor nestas coisas é importante! Desejámos boa viagem mútua. Ele rumo a Sul. Eu a Norte, até Mora, para depois virar a nascente que o destino do dia era próximo de Espanha.  Mas essa é a próxima crónica….

Agradecimentos

Nesta viagem utilizei uma Honda Africa Twin DCT gentilmente cedida pela Honda Portugal e cuja análise está publicada aqui.

O alojamento nas Casas de Romaria foi uma cortesia dos Solares de Portugal, que me acompanham neste projecto de dar a conhecer o nosso País visitando o património arquitectónico e histórico destes solares e mansões familiares.

Ao meu Amigo Aires Pereira, que me motivou a começar a escrever sobre viagens de moto e continua a incentivar e apoiar. E o jantar foi fantástico…!

P’rós Amigos

Disclaimer

A partir de hoje (21.05.2019) e durante os próximos 30 dias, os Solares de Portugal oferecem um desconto de 10% nas reservas efectuadas para este destino, sendo que nesse acto deverá ser indicada a referência 6F0BD582 e mencionar que a casa visitada foi a Casas de Romaria em Brotas.

Este desconto não é acumulativo com campanhas em vigor e a reserva da estadia terá que ser feita através da CENTER promo@center.pt e tel 258 743965 e não directamente à casa.

Outros benefícios podem ser consultados na página P’rós Amigos!

Africa Twin – O mito, a lenda e…..dois mil e tal quilómetros depois!!!

Durante alguns dias, em dois períodos diferentes andei com a Africa Twin CRF1000L DCT. Percorri mais de 2000km no Alentejo e Algarve. E o diagnóstico ficou feito: é uma excelente moto e a que eu gostaria de ter nesta altura…

Abril/Maio 2019

25 Janeiro 2019

Por cortesia da Honda Portugal, tive o privilégio de, nas recentes viagens pelo sul do País, conduzir uma CRF1000L DCT, para os amigos e familiares conhecida como AFRICA TWIN.

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E não foi uma AT qualquer! A versão tinha a caixa automática DCT – Dual Clutch Transmition que, sendo alvo permanente de discussão entre os ”puristas” do pedal e manete e os “modernistas” que a acham a última coca-cola do deserto, garante desde logo uma certeza: ninguém discute os inegáveis méritos desta versão da Africa Twin dos tempos modernos. A conversa centra-se no sim ou não ao DCT. E é uma discussão mais apaixonada do que racional…

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Pela minha parte, digo já que tomo o partido dos segundos (neste caso) e considero esta verdadeira inovação que a Honda trouxe para o mundo das motos, um factor decisivo ao tomar opções futuras sobre motos.

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E aqui vale a pena tecer algumas considerações sobre a relação entre a marca Honda e o corrupio de inovações que vemos no mundo das motos.

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A primeira constatação é que, nos segmentos de mercado em que a Honda está presente, não há motos más. Pelo contrário. Muitas, por invenção, analogia ou cópia vão sucessivamente acrescentando funções, características, “inovações”, geralmente com as siglas apropriadas ao marketing “da coisa”. É raro vermos a Honda embarcar nestas dinâmicas. Mas quando o faz….a coisa é séria. O DCT é um excelente exemplo (como dizia em tempos um anúncio de um “enlatado”… um dia todos serão feitos assim). Inovação verdadeira, porque inédita e diferenciadora. E como tal, mais dificilmente imitável pela concorrência. É assim que a Honda entende o conceito de inovação!

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Nesta altura, dizem vocês: “deixa-te de paleio e fala mas é sobre a moto!”.

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Então aqui vai (voltarei ao DCT lá mais à frente. É inevitável!)…

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A primeira coisa que me chamou a atenção (e não de agora) foi o respeito manifestado pela herança das “velhinhas” Africa Twin. As linhas evocam-nas, sem deixarem de ser modernas, actuais e elegantes. Acresce que a pintura da que me calhou em sorte, tricolor, evocava as antigas, com as espectaculares jantes douradas. É uma opinião pessoal, exclusivamente pessoal, mas uma Africa Twin tem que ter rodas douradas…e se o esquema cromático não o aconselha…mude-se o esquema cromático!

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Antes de ir às coisas importantes, uma breve recordação. A primeira AT foi lançada em 1988 (uma evolução da Transalp lançada no ano anterior) com motor duplo cilindro em V e 647cc e cujo desenvolvimento e posterior construção foi feita no seio do HRC (um selo de garantia que as torna hoje em dia ainda mais valiosas…), tendo como inspiração as máquinas que à época dominavam o Paris-Dakar.

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Dois anos depois, o motor “cresce” para 742cc.. Com regulares actualizações, a destacar as de 1989 e 1993, a sua produção manteve-se até 2003. Em 2016, a Honda volta à Africa Twin, desta feita com um motor (sempre) de 2 cilindros mas paralelos, 998cc e 95cv. O carácter está lá, o visual muito bem actualizado também…e até o “bater” do motor e o seu som fazem lembrar os saudosos Vs….

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Africa Twin – 2200km de convívio

Finalmente, vamos lá então à experiência com a Africa Twin:

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Consideração importante (um clássico Honda), em nenhum momento a forma condiciona o conteúdo. A mota é equilibradíssima, em andamento não se sente o seu peso a não ser na estabilidade que proporciona, e proporciona uma muito boa protecção, atendendo à sua tipologia. Quando me sentei na moto, a sensação foi que tinha sido feita “no alfaiate”. Caí na perfeição, a posição sentado, a altura e posição do guiador, os comandos e o painel à frente dos olhos, tudo como se tivesse sido feito por medida.

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Mas, não há bela sem senão. E é aqui que encontrei dois defeitos sensíveis: o primeiro, no punho esquerdo, a disposição dos comando de buzina e piscas não me agradaram. Ao ponto de geralmente andar “à pesca” do pisca. Outro aspecto que é evidente durante o dia: o painel de bordo: tem toda a informação necessária, a navegação mesmo durante a condução é simples mas….faz imensos reflexos e em muitos casos, mais facilmente vemos o nosso reflexo que alguma da informação. Já à noite, com um fundo em azul e lettering branco, tem uma visibilidade notável.

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É evidente que a zona dos ombros e dos antebraços (nestes senti-o porque foi a única zona em que o blusão ensopou com as chuvadas que apanhei) está mais desprotegida. É normal nas trail. E a AT nem sequer será das piores neste domínio, pelo contrário.

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Tudo junto, os quilómetros sucedem-se às centenas (sim! Às centenas…) e o corpo tarda muito a queixar-se. Para quem tem alguma envergadura e mazelas nas costas…dizer isto já é dizer imenso sobre o conforto que é fazer viagens na AT. A suspensão absorve na perfeição todas as irregularidades da estrada e à medida que as atravessamos dá a sensação que vamos num berço, tal a forma como vamos integrados com a moto (nem “em cima” dela como numa mais endureira, nem “dentro” dela como nas mais radicais).

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E o prazer aumenta porque alguém com conhecimentos musicais profundos lá para o Japão, resolveu dotá-la de uma banda sonora que é…fantástica. Uma “voz” grossa, pausada, rouca que em marcha lenta impressiona e na estrada em velocidade de cruzeiro faz companhia sem qualquer tipo de incómodo. A imagem que me vem à cabeça é a de irmos a ouvir um álbum do Leonard Cohen (os fãs que me perdoem a heresia…)!

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A altura da moto tem os constrangimentos naturais. Temos sempre que ter algum cuidado quando paramos…não vá o pé não encontrar o chão e o peso da moto (o centro de gravidade é alto) tornar irremediável a queda! Aconteceu, mesmo com pernas compridas…

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Por outro lado, a circulação em cidade ou em trânsito intenso em estrada é espectacular. Pairamos sobre os “enlatados” com uma boa visão muitos metros adiante. A moto é algo sensível a ventos laterais. Mas julgo não ser um defeito mas antes uma inevitabilidade. A mancha de perfil feita pelo condutor e sua posição de condução e pela moto é muito avantajada, logo sensível. Principalmente, sente-se na roda da frente com o seu diâmetro de 21”. Não tenho dúvidas que nas mesmas circunstâncias outras motos da mesma tipologia sofrerão de idêntico mal, pois a aerodinâmica (principalmente a lateral) não será a maior prioridade. Acresce ainda que a moto tinha instalado o kit de malas (e bom jeito deram!) o que ainda aumenta essa “mancha”.

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Outro aspecto que me impressionou foram os ângulos em curva que a moto permite – será melhor dizer, que convida? – tornando uma estrada revirada em momentos de diversão absoluta. Na realidade quer a inserção em curva se faz com uma certeza grande (e voltamos ao tema da roda 21”) como a saída em força é … entusiasmante!!! Como é óbvio, não estamos a falar de uma “R”…nem lá perto. Não tem nada a ver. Mas, dois condutores com perícias idênticas, numa estrada de serra…admito que o primeiro a chegar não terá muito que esperar pelo segundo. Mas uma coisa sei…o da AT vai chegar muito mais fresco e descansado!

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Os travões acompanham naturalmente o equilíbrio da moto. Estou habituado a que “mordam” com mais acutilância (o que terá a ver com a diferença de perfil de moto que uso no dia a dia) mas realizada a necessária habituação, excelentes. E nas muitas ocasiões em que o clima não ajudou, muita chuva e vento, em nenhum momento se negaram a actuar em conformidade.

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Já vos falei da ergonomia, do conforto, das suspensões, da aerodinâmica, dos travões, do peso, do som, da roda 21… o que falta? O motor e a transmissão. La está…..o DCT. Vamos ter que falar do DCT….

Motor e Transmissão – DCT: Dual Clutch Transmition

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O motor surge perfeitamente disponível desde baixas rotações e depois sobe alegremente. Evidentemente que o seu momento glorioso não será perto do red-line, pelo contrário, nem isso seria de esperar (nem desejável) numa moto que faz da polivalência o seu ponto forte. O binário está lá para quando dele precisamos. E está mesmo! Mas sem nunca nos provocar sobressaltos ou “saltos em frente”. A moto transmite confiança! Muita confiança….

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Tudo isto é possível também graças à conjugação dos “modos de condução” com o esquema de gestão da transmissão. E lá vamos nós falar do DCT!

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A moto tem 4 “modos de condução” – 3 pré configurados e 1 personalizável – que fazem toda a gestão da electrónica disponível: ABS, HSTC – Sistema de Controlo de Binário, sistema de detecção da inclinação, que altera o padrão de passagem das mudanças consoante o grau de inclinação, etc.

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Os 4 modos são Tourer, Urban, Gravel e User (este o personalizável). Na minha experiência apenas não utilizei este último (não cheguei lá….nem sequer sei se, tendo uma moto destas, o faria sem ser para alguma situação mais específica, até porque os restantes chegam e sobram!).

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No caso do Urban, foi mais para ver a diferença que será mais sensível para quem eventualmente a use intensamente no tráfego urbano quotidiano. Numa curta (mas divertida) experiência em TT utilizei o Gravel e nota-se a sua influência no comportamento da moto, muito mais “agarrada” ao chão e mais intuitiva na utilização (tenho quase nula experiência nestas condições…). Note-se que os pneus estavam a léguas de serem os mais indicados a esta utilização…

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Em resumo, o modo Tourer foi o standard da experiência.

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Por outro lado, mais especificamente do lado da transmissão – o tal de DCT – temos 4 níveis de gestão: D(rive) e S(port) com 3 escalões. Assim o D (também poderia querer dizer “default”…até porque quando ligamos a moto e activamos a caixa, é neste modo que sempre fica) faz as passagens de caixa a rotações mais baixas, alongando as relações e permitindo um modo de condução mais suave e económico. Depois, seleccionando o S (a moto recorda sempre qual o último S escolhido) através de um segundo toque no botão de engrenar a caixa (o primeiro toque activou o D), teremos sucessivamente o S1, S2 e S3, cujo efeito mais sensível é o de as passagens de caixa serem efectuadas a regimes cada vez mais elevados. Como é óbvio, no S3 as mudanças são mais “esticadas”. Também aqui…o consumo se poderá ressentir. Mas o gozo é imenso! “No pain, no gain!” .

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Em estradas de serra, reviradas, com bom piso, e condução empenhada, experimentei o S1 e S2. Este último revelou-se o mais gratificante. Todavia, importa ainda fazer aqui uma referência nada dispicienda: a caixa faz as passagens de caixa de forma automática (inclusivamente detecta se estamos numa subida ou descida mais acentuada, actuando em conformidade, reduzindo para manter a rotação ou activando o travão motor para melhorar o controlo, respectivamente)…por isso é uma caixa automática!

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Mas….o condutor pode sempre, em qualquer momento sobrepôr-se a ela e reduzir ou passar acima através dos dois botões do punho esquerdo: polegar para reduzir e indicador para subir (devo dizer que me habituei desde o primeiro momento…talvez por o movimento ser idêntico às mudanças das bikes de BTT…sempre as 2 rodas!).

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Assim, porque na minha forma de conduzir, gosto de entrar nas curvas com mudanças baixas e depois ir subindo à medida que saio da curva, utilizava um “sistema misto”: reduzia manualmente uma abaixo daquilo que o DCT fazia e depois deixava-o gerir a saida em força. Perfeito e diversão garantida. Só um alerta…se não formos incisivos no acelerador, pode suceder que a moto entenda tal como vontade de “subir” e introduzir a mudança acima prematuramente.

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E isto porquê? Porque o sistema de gestão “percebe” as intenções do condutor!!! Inteligente? Talvez ainda não…mas suficientemente bem programado para o fazer. Dou um exemplo: se formos em modo D em estrada aberta e andamento normal, as passagens de caixa fazem-se na zona das 2200rpm. Mas se entretanto precisarmos de fazer uma ultrapassagem e “enrolarmos” decisivamente o punho, a moto “entende” e se o mantivermos “enrolado” as passagens de caixa far-se-ão a rotações mais elevadas.

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Dito isto, o que representa o DCT? Consideremos apenas as configurações de fábrica (omitimos então o “User”)…

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3 modos de condução, combinados com 4 níveis de gestão da caixa (já aqui temos 12 combinações diferentes), mais a gestão electrónica e acrescentamos a intervenção manual a gosto (utilização das patilhas de selecção de mudanças) e chegamos a um número infinito de possibilidades!

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Se a tudo isto adicionarmos a opção de escolha do modo M – intervenção manual para selecção de mudanças – isto é, o condutor é que mete as mudanças quando e como quer (sempre nas patilhas, claro que não há manete de embraiagem ou pedal selector), só me ocorre a célebre frase do Buzz Lightwear no Toy Story: “até ao infinito e mais além!

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Será preciso acrescentar que fiquei adepto incondicional do DCT? Reconheço que hoje em dia, as caixas das motos são sofisticadas e de excelência, que os quick-shifts facilitam a rapidez de utilização, mas….este é todo um novo mundo. E como acima referi, acredito que um dia todas serão feitas assim. Todas? ….Bem, quase todas.

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De referir ainda que existe a possibilidade de activar dois botões no lado direito do painel: o ABS para o desligar e o G onde a tracção e o controlo da moto aumentam, ao reduzir o deslizamento da embraiagem durante as passagens de caixa. Obviamente para utilizar em condições de utilização mais difíceis e específicas.

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Notas finais:

A primeira para os consumos: sem preocupações de economia na condução, com diferentes condições de circulação (desde temporal a calor, vias rápidas, estradas municipais ou de serra), mas sem exageros de qualquer espécie….ou seja, uma utilização muito aproximada do normal mas naturalmente dedicada a explorar as características da moto, fiz cerca de 5,3 l/100km. O que me parece francamente bom e acima de tudo melhorável numa utilização quotidiana!

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A segunda para a qualidade da moto. Uma palavra apenas: Irrepreensível! Ou seja, tipicamente Honda.

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Outra ainda, que tem a ver com a agradabilidade de utilização. Com intempérie nunca me senti desconfortável (para lá do que as condições do tempo admitiam), a protecção face à chuva e ao vento eram muito boas, permitindo por exemplo que a viseira do capacete (mesmo olhando por cima do vidro) nunca estivesse demasiado molhada e que o equipamento se mantivesse em boas condições (e não ficasse sujo!).

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Quando o calor apertou (travessia do Alentejo com temperaturas acima de 30º e velocidades de cruzeiro na ordem dos 100…e qualquer coisa), nunca senti o calor proveniente do motor nas pernas ou a circular para o tronco, o que prova o bom trabalho neste aspecto da aerodinâmica.

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CONCLUSÃO:

Reflecti bastante sobre a utilização da Africa Twin. Tive muito tempo para tal (alguns troços de estrada monótonos e convidativos à introspecção) e a conclusão a que cheguei foi que esta moto, em concreto com o DCT, poderá não ser a melhor moto do mercado (cada um dirá, legitimamente, que a sua é a melhor) até porque afirmá-lo seria um absurdo, mas será certamente a moto que neste momento eu gostaria ter (VFR…mil perdões, mas…sabes, a vida é assim…e em questões de motos não precisamos ser monogâmicos!)!

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