2 – Real Fábrica do Gelo
Na primeira parte da descrição desta volta, abordei mais em detalhe o percurso. Para agora ficou a história da Real Fábrica do Gelo. Fica em plena Serra de Montejunto, perto do cume e é algo que vale a pena visitar. Para percebermos que muito antes da existência de algo banal como um vulgar frigorífico, já havia quem valorizasse a utilização do gelo e até desfrutasse do sabor de um refrescante gelado. Afinal como se produzia gelo se não havia frigoríficos?
Fizemos a aproximação a Montejunto por Vila Verde dos Francos. Subimos a serra e, a caminho do cume, virámos primeiro à direita e depois à esquerda (na direcção do Quartel).
A Real Fábrica do Gelo fica logo a seguir a estas instalações militares.
No espaço, para lá de um Centro de Interpretação, de um pequeno parque de campismo em frondosa mata com alguns equipamentos adequados a umas belas churrascadas, temos o complexo que efectivamente constitui a Real Fábrica de Gelo. Note-se que não é visível da estrada mas é na Recepção (que estava encerrada para obras) ou no Centro de Interpretação que se obtém a entrada para a visita que é guiada. Atenção que são poucos os horários para tal (a visita demorará cerca de 1 hora, não pela extensão mas pela riqueza da explicação), pelo que se sugere uma busca prévia na internet para perceber qual a hora mais conveniente. A visita custa 2 € (bem empregues!).
Nós fomos uns autênticos privilegiados! Porque há muito que tinha passado a hora da visita mas a simpática senhora que lá estava, não só se disponibilizou para uma visita exclusiva, como também nos brindou com uma detalhadíssima explicação. Fabuloso!
Este complexo esteve ao abandono até meados dos anos 90 do século passado, quando alguns estudantes da zona do Cadaval os “descobriram” e encontraram os edifícios em ruínas e cobertos por denso matagal. Mais tarde, a autarquia resolveu promover a recuperação destas instalações cujo interesse histórico não é só a curiosidade de um processo de fabricação de gelo (sem frigorífico!) mas também pelo facto de ser único em Portugal e muito raro por essa Europa fora.
Consta que o “fabrico de gelo” remonta ao tempo do rei Filipe I de Portugal (Filipe II de Espanha) que era um grande apreciador de gelados. À época, a matéria prima seria proveniente da Serra da Lousã, onde a neve que no inverno a cobria era aproveitada. Assim, terão existido uns silos em pedra escavados no chão onde, sempre que nevava, era acumulada a neve, compactada até formar gelo. Depois, este era transportado até à Corte pelos meios usuais da época. As percas eram substanciais. Alguns (muitos) anos mais tarde, uma nova forma de fazer o precioso gelo foi desenvolvida, neste caso na Serra de Montejunto.
A construção da Real Fábrica de Gelo remonta aos inícios do séc. XVIII, sendo que em 1782, foram realizadas importantes obras de ampliação pelo neveiro Julião Pereira de Castro. A posse dos terrenos e das instalações manteve-se na família e herdeiros deste até que a autarquia chamou a si a propriedade e a restauração, como acima referi, nos finais dos anos 90 do século XX. A fábrica produziu gelo até 1885.
Mas como se processava a fabricação do gelo?
Em primeiro lugar importa referir o clima propício da Serra de Montejunto (frio e húmido) e o facto da Fábrica ficar na encosta virada a norte (com escassa incidência solar).
O complexo divide-se em 3 áreas.
A primeira, a zona de elevação e distribuição de água, constituída por 2 poços, uma nora (movimentada a energia animal) e um tanque reservatório com 151 mil litros de capacidade e um segundo também de elevada capacidade. Nesta área, fazia-se a elevação da água dos poços para o enchimento dos reservatórios.
Posteriormente, a partir destes, quando o clima era favorável (frio!) processava-se o enchimento dos tanques de congelação ou geleiras, que constituiam a segunda área da Fábrica.
Quando o frio assolava esta zona, e os tanques de congelação eram cheios, aguardava-se que a água neles contida (com uma altura máxima de cerca de 12 cm) congelasse. Invariavelmente este processo era integralmente noturno.
Quando tal sucedia, o guarda da Fábrica descia à povoação de Pragança, para chamar os moradores para virem carregar o gelo. Os primeiros a chegar, seriam os que eram contratados para a tarefa (consta que aqueles que conseguissem ficar a trabalhar nesta faina teriam os rendimentos suficientes para subsistirem durante um ano).
A terceira área era constituida pelos poços ou silos de armazenamento e zona de expedição. Ficava um pouco acima, na encosta da serra (numa zona que mesmo durante o dia ficava encoberta do sol pela própria montanha) e era necessário que o gelo produzido nos tanques fosse carregado em ombros e depositado nos silos. Estima-se que cada carga pesasse cerca de 65kg! Não era, portanto, trabalho fácil…
Esta área integrava dois poços de armazenamento, onde o gelo era compactado para evitar grandes perdas, uma sala onde era cortado e embalado (em palha) e um terceiro poço onde era armazenado e se preparava a expedição.
Posteriormente, o gelo já compactado e embalado em volumes superiores, era carregado por animais até ao cimo da serra e depois encosta abaixo, até ao Carregado onde os barcos estacionados na Vala com o mesmo nome aguardavam para depois o transportar até Lisboa.
Uma vez que se tratava de uma encomenda régia, tinha prioridade sobre tudo o resto que aguardasse transporte…
Nesta época, o gelo era já um bem muito apreciado (como podemos ver pelo anúncio)…
De referir ainda, que o gelo produzido não se destinava apenas para o usufruto da corte ou das classes mais abastadas. Era também destinado aos hospitais onde era utilizado em muitas curas.
Antes do Terramoto, o Hospital de Todos os Santos era um dos principais destinos para lá da Casa Real.
Mais tarde, o gelo passou a ser também vendido, nomeadamente naquela que na altura era conhecida como Casa do Gelo (propriedade dos mesmos donos da Fábrica) e mais tarde, já perto dos nossos dias, como Martinho da Arcada.
E já agora, nunca se questionaram a razão do nome do Café Gelo situado no Rossio em Lisboa? Pois é…tem tudo a ver.
A Fábrica tem ainda no seu perímetro um Forno de Cal.
Funcionou inicialmente para a construção e manutenção da própria Fábrica e manteve-se em laboração até ao séc. XX mas apenas para fornecimento de cal às povoações mais próximas, nomeadamente Pragança.
E assim foi a nossa visita do dia. Espero ter despertado a curiosidade…
Isto de andar de mota também serve para ver e aprender. E deixo a sugestão: se tiverem filhos pequenos, levem-nos a visitar a Fábrica Real do Gelo para poderem perceber que os gelados que hoje com toda a facilidade (e deleite!) podem saborear, antigamente tinham por trás um processo complexo e sobretudo muito árduo de obter.
PS: Hoje falei pouco de motas…para compensar, aqui ficam elas!
Em resumo, a jornada foi assim:
E tudo estava ali…ao virar da esquina!
Leia a primeira parte deste passeio aqui!
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