Entro em Chaves vindo de sul.
Pela segunda vez em menos de 2 anos. De ambas as vezes, para no dia seguinte me lançar estrada fora e percorrer a Estrada Nacional 2.
Tinha saído 2 horas antes de Guimarães e segui o percurso por auto-estrada. A 7 primeiro e depois a 24. Se na viagem anterior, tinha passado por Braga e depois pela lindíssima e divertida N103 até Montalegre e daqui por estradas municipais, onde foi possível apreciar a rudeza da paisagem do planalto transmontano, desta feita percebi claramente que era oriundo do lado de cá dos montes.
Desde Guimarães, por bom piso, começamos a subir….a subir paulatinamente…e vamos ganhando altitude. A serra do Alvão, que a A7 atravessa dá-nos a cada passo um alcance visual mais amplo, com vales profundos e verdejantes. A tranquilidade do pouco trânsito permite-nos até breves momentos de algumas desconcentração da condução e desfrutar das vistas (quase que uma visão estrábica em que o olho esquerdo aponta ao asfalto e o direito à paisagem).
Esta serra ultrapassa os 1200m de altitude e creio que não terei passado longe de tal. Magnífico sim, mas estou certo que explorar as estradas da região será ainda melhor. A ver no futuro….
Em Acqua Flaviae!
Chegado à cidade atravessada pelo Rio Tâmega renovei a sensação que já tinha. Não é cidade de excepcional beleza, talvez porque aqueles que desde há muitos séculos a habitam sempre terão preferido que ela lhes sirva em função das suas necessidades e das duras condições de vida, em detrimento de alguma beleza “para inglês ver”. Atenção! Não é uma cidade feia. Muito menos hostil. Nada disso, como tentarei descrever.
É quase plana, na maior parte arejada e com um rio ao seus pés, o que é sinal de frescura. Senti como se um espírito me dissesse: “nós estamos cá, vieste porque quiseste, ninguém te pediu que o fizesses. Mas és bem vindo, enquanto cá estiveres és dos nossos, desfruta e quando fores, não te esqueças de nós!”.
Chaves é uma terra que tem qualquer coisa…um carácter. Personalidade. Carisma!
E voltarei sempre que puder.
É bom lembrar que a Acqua Flaviae do tempo dos romanos é muito mais antiga que a nossa própria nacionalidade e tem um dos monumentos em Portugal de que mais gosto. Remete precisamente para essa era: a Ponte de Trajano. Traz-nos o imaginário das legiões conquistadoras, da ordem imperial e da magnífica civilização, cuja queda posterior se transformou em séculos de retrocesso. E…vagamente também, a ironia dos lápis de Uderzo e Goscinny e os seus Astérix e Obélix…vagamente, porque isso é história de outras paragens.
A Ponte de Trajano, que não me canso de apreciar pela sua inegável beleza, o desenho e o equilíbrio simétrico dos seus arcos de volta redonda, foi aqui construída nos finais do Século I da era cristã. Sim, esta notável obra de engenharia tem 2 mil anos! Com cerca de 150m de comprimento, tem visíveis 12 arcos e mais 6 soterrados pelas construções que aqui ladeiam o Rio Tâmega. No meio dois marcos com inscrições da época que referem as autoridades romanas de então e o tributo às gentes (aos povos) que a ajudaram a erigir. De realçar que este foi até cerca de 1950 o principal acesso à Cidade!
A construção desta ponte foi a forma de atravessar o caudaloso Rio Tâmega na importante estrada romana, a Via Romana XVII do Itinerário de Antonino, que unia duas das mais importantes cidades do norte da Península à época do Império Romano: Astorga (Asturica Augusta) e Braga (Bracara Augusta). Veja-se a importância de ambas pois este era apenas um dos 4 itinerários que uniam essas cidades.
O outro legado desses tempos em Chaves, remete-nos para a sua designação então: Acqua Flaviae. refiro-me às termas e ao reconhecimento da valia das fontes de águas de Chaves (o termalismo era algo que os romanos conheciam e prezavam).
E uma pequena nota: A coincidência da EN2 se iniciar em Chaves (sendo que alguns percursos desta estrada recorrem a traçados da era romana também, nomeadamente o traçado por Vidago e que se destinaria à travessia do Douro na zona da Régua e depois a Lamego – Lamecum) e da sua homóloga do lado de lá da fronteira, a Ruta de la Plata, terminar precisamente em Astorga (originalmente esta Ruta vinha desde Mérida – Emérita Augusta – outra importante cidade romana. Na actualidade, por questões de marketing turístico certamente, a estrada é moderna (N-630) e vai de Sevilha a Gijon, passando por Mérida mas esquecendo Astorga…).
Sendo uma cidade ancestral, naturalmente Chaves tem muita história e património edificado que merece referência.
Depois da era romana, dos bárbaros que os substituiram (visigodos, suevos, havendo registo de ser sede de um bispado cristão) e do domínio árabe que lhes sucedeu, Chaves regressa à influência cristã no séc IX, quando o Conde Odoário a toma ao serviço dos reis das Astúrias. Em 1093, a vila de Chaves é incluída no dote de casamento de D. Teresa com o Conde D. Henrique. O seu castelo terá começado a ser edificado no Séc XIII. D. Afonso III passou-lhe foral em 1258 e a Torre de Menagem que é o que hoje resta dessa fortificação medieval terá sido concluída já no reinado de D. Dinis.
Os Paços do Concelho, localizados na Praça de Camões, são um bonito e elegante edifício construído na primeira metade do Séc XIX para residência do Morgado de Vilar de Perdizes. Em 1861, ainda inacabado, foi adquirido pela Câmara Municipal que termina as obras e o adequa à sua nova função.
À sua frente, na praça, está uma estátua de D. Afonso, filho legitimado de D. João I. Este veio a casar em 8/11/1401 com D. Brites, filha de D. Nuno Álvares Pereira, que como dote terá levado todas as terras a norte do Douro. O casal terá escolhido Chaves como seu local de residência e aí nasceram os seus 3 filhos. Entretanto, 11 anos mais tarde, D. Brites falece e D. Afonso retira-se para Barcelos.
Em 1419, D. João I temendo invasão castelhana pelo norte, encarrega o filho de ir para Bragança e acautelar a defesa do reino. É então, já em 1442, que vem a nascer a Casa de Bragança, tão relevante na nossa História e que permanece até aos dias de hoje. D. Afonso foi assim o 1º Duque de Bragança (para lá de 8º Conde de Barcelos). Mais tarde regressou a Chaves onde viveu os últimos anos, tendo falecido em 1461.
Ainda na Praça de Camões, do outro lado dos Paços do Concelho fica a Igreja da Misericórdia. Pequena e com uma só nave, apresenta uma fachada toda em granito e tem a seus pés uma pequena escadaria.
No frontão de pedra que encima a fachada existe um nicho com uma pequena estátua da Senhora do Manto, símbolo da maior devoção para as Misericórdias, pois segundo elas “alberga sobre o seu manto todos os necessitados”.
No interior, para lá de um magnífico altar-mor em talha dourada, tem a suas paredes totalmente revestidas com painéis de azulejos do Séc XVIII que evocam passagens bíblicas.
A Igreja Matriz de Santa Maria Maior terá sido na sua origem, no Séc XII, um templo românico do qual ainda mantém a torre sineira e o portal com estrutura medieval. Mais tarde, no tempo de D. João III, foram acrescentados dois portais de traça renascentista.
O interior de 3 naves e grossos pilares tem um tecto de madeira (Séc. XIX). A capela-mor bem como as capelas laterais, do Santíssimo e de Santa Maria, datam do Séc XVI.
A Igreja de S. João de Deus, do outro lado do rio, foi construída na época de D. João V, em estilo barroco, cujo projecto é atribuído ao coronel Tomé de Távora e Abreu, engenheiro militar flaviense do primeiro quartel do século XVIII.
Existem ainda as termas romanas, o Forte e Convento de S. Francisco, o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso. E naturalmente as ruas estreitas do centro histórico, bem conservadas e com casas varandadas com linha arquitectónica muito característica.
Obviamente, não poderia faltar a foto junto ao marco do km0 da Estrada Nacional 2.
Adiante voltarei a Chaves e à explicação da origem do nome. Também já referi que o objectivo da vinda até esta ponta do País é a de iniciar o percurso da Estrada Nacional 2 e portanto importava cuidar do necessário descanso.
Quinta da Mata: Um enquadramento luxuriante serve de moldura à dureza do granito e ao requinte do interior
Mais uma vez, iríamos ficar num dos alojamentos incluídos nos Solares de Portugal. Neste caso, a Quinta da Mata.
Situada a 3km da cidade, a meio caminho do Miradouro que, a nascente, nos proporciona uma magnífica vista sobre a cidade e todo o vale onde se situa, é uma verdejante propriedade onde a casa principal, toda em granito e originária do Séc. XVII foi estupendamente recuperada das ruínas pelos seus actuais proprietários.
A quinta fornece ainda muitos dos géneros alimentares que ali poderão ser degustados. Não foi o nosso caso. Para lá de tarde termos chegado e de madrugada partido, na altura a casa estava encerrada tendo sido um acto de cortesia e generosidade que nos tocou, o facto de abrir especificamente para esta ocasião.
Espero que as imagens lhe façam a justiça que merece. E se linda é vista do exterior, com um enquadramento espectacular, que dizer do interior?
Quanto aos anfitriões, a simpatia e disponibilidade cativou-nos. Fomos acolhidos como amigos e isso é inesquecível. Não é demais dizê-lo: a obra de reconstrução da Quinta da Mata é notável!
E então? Qual a origem do nome da cidade de Chaves
Já aqui mencionei o nome romano de Chaves: Acqua Flaviae. Mas, e como se terá chegado ao actual nome, que para mais tem reflexo na heráldica da cidade?
Olhemos para o brasão da Cidade de Chaves: nele estão as águas (talvez o Rio Tâmega, talvez a evocação das águas termais), o ex-líbris da cidade, a Ponte de Trajano, o escudo de Portugal e…2 chaves.
Há uma explicação mais científica: que o nome “Chaves” será a evolução ao longo dos muitos séculos do “Flaviae” do nome romano. Poderá até ser. Mas nada como uma boa lenda, que para mais até explica o porquê dos dois nomes: o romano e o actual: a lenda das duas chaves.
A história passa-se na época remota do poderio romano na Península.
Nos tempos em que em Roma imperava Tito Flávio Vespasiano, as suas legiões chegaram a esta região. E aqui se foram fixando. A terra era fértil e começaram a trazer a sua civilização. Construíram estradas, pontes.
Quando aqui descobriram as “águas quentes que jorram da terra”, com a devoção que tinham pela água, logo construíram aquedutos e um grande tanque para se banharem. E com rapidez descobriram os poderes curativos dessas águas.
A cidade aqui nasceu. Chamaram-lhe “Acquae” em preito a essas águas maravilhosas e “Flaviae” em homenagem ao Imperador reinante.
A importância crescente e a fama atravessaram o Império Romano e de tal forma que Tito Flávio Vespasiano nomeou seu procurador em Acqua Flaviae um seu jovem primo, Décio Flávio, que era até aí o comandante da Legião VII.
Mas, ao partir para a Península Ibérica, este deixou em Roma a sua paixão. Uma linda rapariga chamada Lúcia, filha do Cônsul Cornélio Máximo, que também lhe retribuía esse amor.
Todavia, a jovem tinha grave doença que não só lhe afectava o corpo como também lhe tinha retirado a beleza do rosto.
Décio Flávio não a esqueceu. Quando se convenceu que as águas flavienses tinham poderes curativos milagroso, enviou um mensageiro a Cornélio Máximo. Levava uma breve mensagem e uma pequena caixa. Esta continha 2 chaves. O escrito era um convite para que o Cônsul e sua filha Lúcia, fossem para Acqua Flaviae, onde as águas fariam o milagre da cura. E cada uma das chaves tinha o seu significado: uma representava a saúde e a outra o amor.
Apesar de renitentes ao início, finalmente aceitaram o convite e demandaram as terras do norte da Península e a cidade que tinha umas águas milagrosas.
Em pouco tempo, o tratamento com os banhos nas águas fizeram o seu efeito e Lúcia recuperou a sua saúde e a sua beleza. E, já agora, também a proximidade e a possibilidade de estar perto do seu amor, contribuíram para a desejada cura.
Décio Flávio, conseguiu também assim ter ao pé de si a sua amada.
De tal forma que se comprometeram a casar quando Lúcia estivesse finalmente livre desse mal que a afligia. E assim foi!
Conservaram sempre as duas chaves, da Saúde e do Amor, e como sempre acontece nestas histórias…viveram felizes para sempre!
O significado de ambas ficou perpetuado na toponímia da cidade. A Acqua Flaviae viria muito mais tarde a chamar-se Chaves!
Fonte Biblio MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 229-234
Não tenho dúvida nenhuma que esta história é bem mais interessante e bonita que uma qualquer evolução fonética….e explica tudo! Portanto, acreditemos nela…só porque sim!
Como disse no início, voltarei sempre que puder!
Mas era tempo de despedida. A bruma da madrugada acompanhou-nos na jornada que agora se ia iniciar.
Para trás ficava a Acqua Flaviae… ao Virar da Esquina!
Agradecimentos
A moto utilizada nesta viagem foi uma Honda CRF 1100L Africa Twin Adventure Sports, sobre a qual já escrevi a respectiva análise, publicada aqui. A minha gratidão à Honda Portugal pela sua cedência.
Um enorme obrigado também aos Solares de Portugal, companhia de primeira hora neste projecto em que vos dou a conhecer algum do riquíssimo património histórico e arquitectónico dos muitos solares e mansões familiares do nosso País.
E obviamente, a minha gratidão aos anfitriões desta excelente visita à Quinta da Mata em Chaves.
Que recomendo…até porque fica logo ali, ao Virar da Esquina!
P’rós Amigos
A partir de 18/06/2020 e durante os próximos 30 dias, os Solares de Portugal oferecem um desconto de 10% nas reservas efectuadas para este destino sendo que nesse acto deverá ser indicada a referência 6F0BD582 e mencionar que a casa visitada foi a Quinta da Mata em Chaves.
Este desconto não é cumulativo com campanhas em vigor e a reserva da estadia terá que ser feita através da CENTER promo@center.pt e tel 258 743 965 e não directamente à casa.
Outros benefícios podem ser consultados na página P’rós Amigos!
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