Uma aventura à porta de casa
Para mim (e julgo que para muitos que foram aprendendo História na base do empinanço e das mnemónicas…) sempre associo Crato a D. António Prior do Crato. Juro que em miúdo julgava que era o nome do senhor… Mais tarde percebi que o Prior tinha a ver com o facto de ser eclesiástico. E era, mas de uma forma sui generis. E o Crato seria a terra onde foi padre…
Conhecendo o Crato, pequena vila nos confins do nordeste alentejano, sempre estranhei de onde viria tal notoriedade e como era possível ter tido notável protagonismo, em certos momento da nossa História.
Devo confessar que me relaciono com a História, como um informático diria, na “óptica do utilizador”. A ela recorro quando necessito e em ocasiões concretas. Esta é uma delas.
A História do Crato, de Flor da Rosa e da Ordem dos Hospitalários
Segundo parece, o Crato terá sido fundado há cerca de 2.500 anos pelos Cartagineses. A sua notoriedade é mais recente. Mas não muito…
Teria como designação inicial Castraleuca ou Castra-Leuca. No decorrer dos séculos, e por alterações sucessivas, passou a ser Ucrate ou Crate e, por fim, Crato.
Como sabemos, o início do segundo milénio, ficou marcado pela Reconquista Cristã da Península Ibérica. Os Mouros aqui chegaram por volta dos anos 700 e só daqui saíram quando o Séc. XVI estava prestes a começar, com a queda do reino de Granada.
O movimento de reconquista, vindo de norte (começou nas Astúrias) para sul, teve a ajuda de muitos nobres guerreiros da Europa e também a participação de Ordens Religiosas que se dedicavam a combater os Infiéis (as Cruzadas à Terra Santa são o maior exemplo).
Assim, cá chegou, entre outros, D. Henrique de Borgonha a quem pelos seus feitos foi oferecido o Condado Portucalense. E também vieram as Ordens dos Templários e dos Hospitalários.
Esta última, chamada Ordem de São João Baptista de Jerusalém foi fundada em 1093, nesta cidade, para socorro dos peregrinos que se dirigiam à Terra Santa. Também conhecida por Ordem Soberana Militar e Hospitalária de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta. Muito mais tarde, já no Séc. XVI passaria a ser designada apenas por Ordem de Malta (onde passou a estar sediada).
Entre 1122 a 1128, a Ordem estabeleceu-se no Condado Portucalense fixando a sua sede no antigo Mosteiro de Leça, situado nos arredores do Porto. A localidade converteu-se em cabeça do priorado da Ordem em Portugal.
Em 1194, D. Sancho I doou-lhes um vasto território na margem Norte do Tejo, com a obrigação de aí erguerem um castelo, que tomou o nome de Belver. Mais tarde, em 1232, D. Sancho II doou o Crato à Ordem do Hospital, concedendo-lhe o primeiro foral, sendo então Mem Gonçalves, Prior da Ordem.
Em 1340, D. Afonso IV transferiu a sede da Ordem para o Crato, onde se manteve até 1354. Nesta data, D. Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Crato e pai de D. Nuno Álvares Pereira mandou construir o Mosteiro de Santa Maria de Flor da Rosa para instalação da sede da Ordem.
Em 1439, a sede da Ordem regressou ao Crato, vulgarizando-se a designação de Priorado do Crato. Este possuiu 23 comendas e as seguintes 12 terras e seus termos: Amieira, Belver, Cardigos, Carvoeiro, Crato, Envendos, Gáfete, Oleiros, Pedrógão Pequeno, Proença-a-Nova, Sertã e Tolosa.
Ou seja, um vasto território que abraçava ambas as margens do Rio Tejo. A extensão de tais domínios marcava então a enorme importância desta Ordem. Recorde-se que imperava o regime feudal e portanto a Ordem recebia a sua parcela de tudo o que era aí produzido, bem como tinha o poder de mobilizar os homens disponíveis para combater e reforçarem os exércitos reais sempre que tal era necessário. O que acontecia com muita frequência.
Aqui nasceu, diz-se, D. Nuno Álvares Pereira
Referi atrás que o Mosteiro de Santa Maria situado em Flor da Rosa (a escassos 3km do Crato) foi mandado construir pelo pai de D. Nuno Álvares Pereira. E terá sido (embora não seja certo) que aqui nasceu o futuro Santo Condestável.
Como sabemos, D. Nuno, Condestável do Reino, foi o braço direito de D. João, Mestre de Avis, nas lutas dinásticas que garantiram a continuidade da independência de Portugal – vitorioso nas batalhas de Atoleiros, Aljubarrota e Valverde – e que deram início à segunda dinastia da realeza portuguesa. Tal era o seu engenho militar que os Espanhóis tinham verdadeiro pavor de o enfrentarem.
E se temos aqui a ligação ao início da Dinastia de Avis, aquela que representou até hoje o apogeu da presença de Portugal no mundo, é também aqui que vamos encontrar a ligação ao facto que representou o seu fim e, pior ainda, a perca da independência nacional.
D. António, Prior do Crato, Rei de Portugal
Encaminhava-mo-nos para o final do Séc XVI e Portugal tinha uma posição de domínio no mundo. Com os Descobrimentos, o domínio das rotas marítimas da Índia e o ainda inexplorado Brasil, éramos a potência dominante a par da Espanha (unificada à menos de 100 anos). Mas alguma decadência já se pressentia
Quando D. Sebastião ascende ao trono, para lá da sua juventude e impreparação, a imaturidade que o levava a sonhar com batalhas e conquistas heróicas, impele-o a uma improvisada incursão a terras de Marrocos. Seguiu-se Alcácer-Quibir (1578) e a sua morte, lançando Portugal para uma crise de sucessão, pois o Rei não deixava descendência. Sucedeu-lhe seu tio o Cardeal D. Henrique, que viria a morrer em 1580 em plenas Cortes de Almeirim onde iria ser coroado.
Agrava-se a questão sucessória. As principais alternativas eram Filipe II, soberano de Espanha, ou D. António, Prior do Crato, cargo que tinha herdado de seu pai.
D. António era filho bastardo de D. Luís de Portugal e neto do Rei D. Manuel I, pelo que a sua legitimidade à sucessão era discutível, o que reforçava a ambição do rei de Espanha.
Sendo aclamado Rei de Portugal pelo povo de Santarém, viria todavia a perder as sucessivas batalhas perante a maior força e poder do inimigo espanhol.
Assim, fica o Crato, na infeliz pessoa do seu Prior, ligado ao final da Dinastia de Avis e à perda da independência nacional.
No Crato
A vila é pequena. Terá cerca de 2 mil habitantes para um total de aproximadamente 3,5 mil no município. Dos seus tempos áureos resta pouco mas ainda assim relevante.
O castelo medieval, tinha formato trapezoidal com as muralhas reforçadas por 5 torres nos ângulos, sendo a Norte a de menagem. Por sua vez, a cerca da vila, da qual subsistem alguns troços, era amparada por seis torres: do Sino, da Seda, de São Pedro, da Porta Nova, de Beringal e de Santarém.
Em meados do século XVII, foi transformado num fortim abaluartado, com planta poligonal irregular no formato de uma estrela com quatro pontas.
Os séculos seguintes acentuaram o estado de ruína do conjunto, tanto das estruturas medievais como das modernas, desaparecendo a Casa do Governador (da qual subsistem algumas arcadas), a ponte levadiça, baluartes e outros, tendo chegado aos nossos dias apenas alguns trechos de muralha, uma guarita, a cisterna, duas torres arruinadas e algumas canhoneiras.
Encontrei toda a área do Castelo fechada. De fora é possível antever a construção de algo no seu interior…com pilares de betão. Não sei se poderemos ficar optimistas quanto à eventual recuperação do património….
A Igreja Matriz do Crato ou de Nossa Senhora da Conceição data do século XIII, embora com sucessivos acréscimos, subsistindo da época a estrutura imponente da torre sineira. Quanto ao estilo, denotam-se alguns traços góticos. Possui três naves e cinco tramos, separados por quatro pares de arcos ogivais e um arco de volta perfeita.
Na Praça do Município é possível ver o que resta do Palácio do Grão-Prior do Priorado do Crato: um janelão e a imponente varanda sustentada por arcos de volta perfeita.
Para lá dos Paços do Concelho e do Palácio Sá Nogueira encontramos o tradicional pelourinho onde era exercida a justiça. Outros tempos…
Em tempos de maior liberdade, o Museu Municipal é um local de visita obrigatória para melhor conhecer os testemunhos desta tão longa história.
Também ao percorrer as ruas da vila é possível encontrar em muitos edifícios e placas toponímicas, as cruzes da Ordem de Malta.
Mais recentemente, o Crato tornou-se famoso junto da juventude portuguesa pelos seus Festivais de Verão que trazer enorme afluência de gente de fora e bastante notoriedade à vila, com os naturais benefícios para a sua população.
Também as pequenas unidades de alojamento turístico, na zona urbana ou em meio rural são uma forma de trazer a quem procura estas terras uma aproximação às tradições e à cultura destas gentes.
Em Flor da Rosa
Obviamente que o grande destaque desta pequena povoação, até pela grandeza que o faz destacar do resto do casario, é o Mosteiro de Santa Maria, considerado o maior exemplo de mosteiro fortificado da Península Ibérica.
Este mosteiro é composto por três edificações distintas: a igreja-fortaleza de estilo gótico, um paço-acastelado gótico, já com alterações quinhentistas, e as restantes dependências conventuais com traça renascentista e mudéjar.
O conjunto sofreu alterações ao longo dos séculos, nomeadamente nos século XVI e XVII. No tempo do Rei D. Manuel I o espaço monástico é alargado para um maior número de aposentos, transformando-o num Paço Real.
O grande terramoto de 1755 e um temporal devastador em 1897 afectaram toda a estrutura e levaram-na muito perto da ruína.
Mais tarde, jé em 1940 começaram as tentativas de restauro que foram retomadas em 1991 com a planeada transformação em Pousada de Portugal.
Apesar da polémica inicial, veio a revelar-se uma notável recuperação em que a simbiose entre o antigo e o moderno casam na perfeição. Com a vantagem de poder dispôr na sua função turística de todas as valências necessárias e simultâneamente ter sido possível preservar a essência do edificado monumental. Merece assim aplauso a obra do Arq. Carrilho da Graça.
Não há terra em Portugal que não tenha para si, uma lenda que justifique o seu nome. Flor da Rosa não é excepção.
Vem de tempos muitos antigos e ali existiria um pequeno lugarejo onde vivia um fidalgo cavaleiro de mui ilustre nome e bem amado por toda a gente. Certo dia, o cavaleiro adoeceu gravemente. Poucos dias de vida teria segundo os médicos que o acompanharam.
Os seus amigos visitivam-no amiúde. E também a sua noiva de nome Rosa. Certo dia, numa dessas visitas, Rosa levou-lhe uma flor. Perante a estupefação de todos, e quando era esperada a morte do fidalgo, eis que quem morre é Rosa.
Desde então, todos os dias era possível ver o cavaleiro chorar o seu amor perdido junto do túmulo de Rosa. Até que certo dia, ele próprio acabou por morrer de desgosto.
Antes de morrer, o fidalgo cavaleiro fez dois últimos pedidos: que a flor que Rosa lhe oferecera o acompanhasse à sepultura e o nome de Flor da Rosa fosse dado aquele lugar. E assim foi!
Outro edifício que se destaca, não pela sua antiguidade pois tem pouco mais de 100 anos, é a Igreja Paroquial dedicada a Nossa Senhora das Neves. Também ligada à sua construção há uma lenda.
Parece que certa tarde, os pedreiros que iam trabalhar na construção deixaram as ferramentas no local onde se pretendia fazê-la. As mesmas desapareceram e vieram a ser encontradas noutro local…aquele onde a igreja acabou mesmo por ser construída.
Esta pequena aldeia em tamanho, mas grande em costumes e saberes é também conhecida como a terra dos oleiros, pela grande tradição que aqui existe de trabalhar o barro de forma singular.
Existe actualmente uma escola de olaria, que faz com que esta tradição se mantenha viva, apesar de ainda existirem dois oleiros que trabalham e vendem as peças em barro por conta própria.
Como chegar ao Crato e a Flor da Rosa
Para quem venha de sul ou genericamente da margem sul do Tejo, as estradas não são particularmente interessantes. Tipicamente estradas alentejanas, pouco sinuosas. A não ser que nos queiramos aventurar pelas muitas estradas municipais, estreitas e nem sempre nas melhores condições.
Já para quem venha de norte a coisa muda de figura. A EN18 entre Vila Velha de Ródão e Nisa é um pedaço de diversão com 18 km e um bonito enquadramento paisagístico. De Nisa ao Crato é um pulinho.
De qualquer forma, para uns e outros, a Serra de S. Mamede e o triângulo Portalegre, Marvão e Castelo de Vide estão à mão de semear. Ou melhor dizendo, à distância de um breve enrolar de punho. E aí…há estradas retorcidas para todos os gostos!
E termino com uma sugestão: porque não um brinde ao encontro do passado com o presente, olhando para o futuro?
(texto publicado na edição de Abril/2021 da revista Andar de Moto)
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