Desta vez, o destino foi precisamente a zona onde vivi e que quis rever.
A “desculpa” foi a oportunidade de experimentar a Suzuki V-Strom 1050. Moto polivalente mas com evidentes características estradistas, era importante avaliar o seu comportamento, principalmente em traçados sinuosos. O resultado da experiência está aqui.
Dizem – ai os estereótipos!!! – que o Alentejo é plano: “é tudo a direito”… Pois sabem que a pouco mais de 100km de Lisboa é possível fazer um percurso de mais de 70km com curvas e mais curvas, praticamente sem descanso? Sem grandes desníveis mas um deleite para a condução. Pois é. Existe e para lá me dirigi. Obviamente com algumas paragens antes e depois.
A zona que percorri é muito sui generis do ponto de vista administrativo. Percorri os 4 concelhos alentejanos do distrito de Setúbal. Este distrito por sua vez pertencia à antiga província da Estremadura, cuja capital era Lisboa e se estendia até à Nazaré.
Mas os nossos 4 concelhos pertenciam à província do Alentejo. Confusos?
São eles, Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines.
Alcácer do Sal – um cafézinho à beira-rio e fazemo-nos ao caminho
O périplo começou em Alcácer do Sal. As esplanadas à beira rio são óptimas para um cafézinho matinal e depois dar início à função. Aliás, segui pela marginal e tomei depois o caminho que me levou até ao destino seguinte. Já lá vamos…
A antiga Salácia do tempo dos romanos, dois milénios atrás, era já nesse tempo um local importante. Não só pela sua maior riqueza (e que viria mais tarde a ficar no nome) – o sal – mas pela sua localização geográfica, como um entreposto importante porque aí seria possível atravessar o Sado para quem seguia no sentido norte-sul ou vice versa e ainda pela própria navegabilidade do rio.
Fundada antes de 1.000 a.C. (existem vestígios de presença pré-histórica nas suas imediações) pelos Fenícios, a sua importância já denotava a grande riqueza de então: chamaram-lhe Bevipo e o sal era a principal produção da região. Acresce que a navegabilidade do Rio Sado, era propícia ao acolhimento dos barcos que faziam o comércio à época, com a segurança de um porto interior mais protegido das intempéries e da pirataria. A região exportava sal (as margens do rio que ainda retinham o sal das águas oceânicas oriundas da foz, cerca de 40 quilómetros a jusante), peixe salgado e ainda cavalos que seriam abundantes nestas zonas de lezíria.
Tal era a sua importância que os habitantes de Salácia auferiam de privilégios idênticos aos habitantes de Roma. Não era para todos!
E o estatuto prolongou-se pelos períodos seguintes, de domínio dos visigodos e dos árabes.
O castelo, do qual resta apenas a ruína, era imponente: uma torre central com 27 metros de altura (o equivalente a um prédio de 9 andares) e 26m de largo, rodeada por muralha com mais 30 torres de pedra com 25m de altura. Assegurava o domínio da entrada do estuário do Sado bem como das planícies a sul e nascente. Era o mais forte castelo da Península Ibérica.
Tomada pelos Mouros em 715, no seu avanço pela Península Ibérica. A povoação passará a chamar-se Qasr Abu Danis e nela é construída importante fortaleza (Al-Qasr, fortaleza ou povoação fortificada em árabe). Era a capital da província de Al-Kassr. Daqui terá saído certamente a origem da sua actual designação: Alcácer do Sal, pela associação da sua importante fortificação à principal riqueza da região.
Muito demorou a conquista definitiva deste território aos Mouros, depois de Lisboa ter caído às mãos de D. Afonso Henriques em 1147. A primeira conquista ocorreu em 1158 (e só à terceira tentativa), mas não foi definitiva. Só bastante mais tarde, em 1217, Alcácer do Sal ficou na posse dos cristãos. 70 anos depois. Eram outros tempos mas a dificuldade denota também a importância estratégica de Alcácer.
De então para cá, a sua posição estratégica manteve-se relevante e apenas no século XIX a sua principal riqueza, o sal, foi substituído pelo cultivo do arroz, existindo no concelho os maiores arrozais da Europa. Aliás, o concelho de Alcácer do Sal é o segundo mais extenso de Portugal. Mais recente, outra das suas riquezas é a produção de pinhão. Portugal produz cerca de 15% da produção mundial e a região alcacerense é predominante no conjunto do País.
Foi em Alcácer do Sal que em 1502 nasceu Pedro Nunes (sim, aquele que deu nome ao liceu em Lisboa) célebre matemático, tendo-se celebrizado pela invenção do nónio. E que seria fundamental para o posterior desenvolvimento de instrumentos de navegação, como o sextante, que seriam essenciais na época dos Descobrimentos e da exploração marítima.
Já no início do século XX, em 1902, nasceu João Branco Núncio, distinto cavaleiro tauromático e proprietário rural da zona, evidenciando também a componente agrícola desta primeira região do litoral alentejano.
Descrita a história desta agora cidade alentejana, faltava só referir outro dos seus ex-libris: a sua ponte metálica, inaugurada em 1945.
Com características originais, o seu tramo central erguia-se verticalmente para permitir a passagem de barcos à vela que transportavam cereais – trigo e arroz principalmente.
E era também o local de desespero de muitos, que indo ou vindo do Algarve, aí encontravam filas de trânsito homéricas! Naturalmente, antes da construção da auto-estrada (a montante) e da variante com uma nova ponte, a jusante.
Actualmente, e depois de obras de restauro e recuperação, a ponte recuperou este tramo levadiço que permite a passagem novamente de barcos à vela, mas agora com carácter exclusivamente turístico.
Como referi, segui pela marginal e atravessei o Rio Sado na nova ponte rodoviária, a poente da cidade. Mas no regresso, não pude deixar de a atravessar.
A lenda de Almira
Do seu passado árabe, não podia faltar a lenda de uma “moura encantada”.
“Conta-se que Almira (ou Almerinda) era uma pequena criança de tenra idade que ficou abandonada quando os últimos resistentes árabes fugiram quando os cristãos tomaram a fortaleza de Alcácer do Sal. Foi adoptada pelos novos senhores.
Apesar de não recordar a tragédia ocorrida na sua infância e de ter sido muito amada por quem a criou, a jovem encerrava dentro de si uma tristeza inexplicada, feita de saudades do que não conhecia.
De beleza sem igual e dotes de poeta e cantora, a todos encantava com a sua beleza e a sua arte. Mas nenhum cavaleiro conseguia conquistar o seu coração.
Certo dia uma cavaleiro de nome D. Gonçalo chegou a Alcácer do Sal. Como qualquer outro cavaleiro, quis conhecer o sorriso da já tão famosa Almerinda. Apesar de D. Gonçalo não ter uma beleza que arrebatasse corações, atingiu em cheio o coração da jovem que por ele ficou enamorada.
A partir desse dia, Almerinda não mais sorriu aos outros cavaleiros. Encostava-se sim às paredes da sua torre cantando. Até que um dia, D. Gonçalo lhe respondeu de igual forma.
A jovem respondeu: “Oh! Meu senhor D. Gonçalo…”
O resto, não conta a lenda, mas diz –se que em noites de luar de Agosto ouvem-se os sussuros dos dois amantes eternamente encantados nas muralhas da velha Salácia romana. “
Os cais palafíticos da Carrasqueira
A Carrasqueira, aldeia de pescadores do Rio Sado, fica a meio caminho entre Alcácer e a Comporta.
O açoreamento do rio e principalmente a influência das marés que aí ainda se fazem sentir de forma significativa, levantava problemas a esses pescadores pois na baixa-mar não só tinham dificuldade em chegar aos barcos como os mesmos ficavam atolados no lodo.
Assim, como o engenho humano é inesgotável, nos anos 50 e 60 do século passado, foram construíndo passadiços em madeira (sem grandes rigores de construção – importava a função e não a forma) assentes em estacaria irregular também de madeira, dando assim um ar de certa fragilidade e imperfeição.
O certo é que ainda hoje cumprem a sua função. Aliás, ao longo do tempo, foram sendo acrescentados algumas pequenas barracas onde os pescadores guardam as suas ferramentas e artes de pesca.
O aspecto artesanal dos diversos cais palafíticos bem como o enquadramento paisagístico do estuário do Sado, tornam a Carrasqueira um destino turístico relevante na zona.
Cheguei à nova Tróia
Há muitos anos que não visitava Tróia. Lembro-me de miúdo ir até lá, onde ainda quase nada existia, sentado nas pernas do meu pai, a “conduzir” o carro por uma estrada de terra batida…
Também, me recordo, já no início dos anos 70, do aparecimento da Torralta que aí construiu o que pretendia ser um destino de férias para a classe média que começava a surgir com o crescimento de Lisboa e a industrialização da sua periferia. Os hotéis que décadas depois viriam a ser implodidos, as piscinas do Bico das Lulas, a travessia do Sado em rápidos hovercrafts, etc.
Hoje, Tróia é um conjunto de hotéis e resorts luxuosos destinada à elite. Quem atravessa o Sado já não fica na Ponta do Adoche, mas sim abaixo para não perturbar a zona mais reservada e o facto de por via terrestre ser uma estrada “sem saída” permite algum sossego e discrição.
Era tempo de rumar a sul a ao objectivo principal.
A caminho do carrossel alentejano
Deliberadamente evitei as praias a sul de Tróia. Comporta, Carvalhal até à Praia da Galé já perto de Melides, são mais para desfrutar do que para ver. E não tenho a certeza que, se fosse até alguma delas, de lá conseguiria sair a tempo de cumprir os objectivos da jornada. É que o dia ia quente, a apetecer uns mergulhos e uns banhos de sol.
Até Melides, cerca de 45km, a estrada corre fluente, passa-se pela Penitenciária de Pinheiro da Cruz (tive alguns colegas de escola que eram familiares dos funcionários prisionais) e, naquela vila, rumamos a Grândola.
Aí começou a diversão! Chamei-lhe carrossel porque é afinal disso que se trata: até bastante mais abaixo, no Cercal, percorrem-se cerca de 70km de estrada de serra. Curvas e mais curvas, dos mais diversos tipos, curvas e contra curvas encadeadas, é garantido que nos divertimos. Não temos no nosso País muitos troços de estrada com estas características e tão longos.
De Melides a Grândola, são cerca de 18km pela EN261-2. O piso é razoável, a justificar algum cuidado. Com significativa cobertura de árvores e baixa intensidade de tráfego, tal significa também que neste ou naquele local o piso poderá não estar totalmente limpo.
Par quem queira percorrer este trajecto, e desfrutar na plenitude da sinuosidade do traçado recomendaria que fizesse tudo de seguida. No meu caso, sendo Grândola a terra da minha infância, aí parei para almoçar, onde me esperavam. E foi bom o repasto! Restaurante Litoral…recomendo!
Feitas as honras da mesa e do convívio, segui caminho.
Pareceu-me ouvir alguém gritar: “Nova volta! Nova viagem!!!”
O destino foi Santiago do Cacém pela EN120. Mais 30km de curva para aqui, curva para ali….tomba para a direita, tomba para a esquerda na Serra de Grândola. Diga-se que até aqui a Suzuki V-Strom se comportava como se esse fosse o seu terreno de eleição…e se calhar até é!
Santiago do Cacém, herdeira da romana Miróbriga (que dista meia dúzia de quilómetros da urbe actual) e dominada pelo seu Castelo com origem no período de domínio árabe mais tarde conquistado no reinado de D. Afonso II foi apenas ponte de passagem e reabastecimento de combustível. Terra natal do poeta Manuel da Fonseca e, já na actualidade da cantora Áurea, tem a sua principal actividade económica na agricultura.
Continuei na EN120, agora atravessando a Serra do Cercal.
O pregão continuou: “Vá lá, freguês….mais uma voltinha!!!”
O rumo era esta vila ainda no concelho de Santiago do Cacém, mas não cheguei até lá. Numa pequena aldeia chamada Sonega, 21km depois, apontei a poente, em direcção ao mar. Não valia a pena prosseguir na EN120 pois a partir daí a estrada já seguia na planície e tinha pouco interesse, até porque depois teria que voltar atrás.
Tinha terminado o carrossel alentejano: 70km de estrada de serrania.
O litoral da minha infância
O principal objectivo do dia estava realizado. Experimentar a V-Strom num pedaço de estrada verdadeiramente divertido e excelente para avaliar as capacidades da máquina.
Chegado à orla marítima, iria percorrer algumas das praias (agora sim) onde passei muitos verões da minha meninice. A ordem foi meramente geográfica. De sul para norte, porque esse era também o rumo do regresso.
Comecei por espreitar se o pessegueiro, “plantado por um vizinho de Odemira” ainda estava na ilha…à distância não deu para ver. Mas acreditemos que a imaginação do Carlos Tê está correcta…
Da Ilha do Pessegueiro passei por Porto Côvo e uma pequena paragem para descanso.
Depois, S. Torpes. Praia que em tempos recomendava cautelas pelas suas correntes e pela água fria (mas não tanto como Sines!). Hoje é, segundo dizem, a praia com a água mais quente da Europa, graças à circulação de água do mar para refrigeração da central que fica logo ali.
Depois Sines. Percorri, como tantas vezes quando aí passava férias, a sinuosa e íngreme descida que sai do centro histórico ao lado do castelo, até cá abaixo à praia. O que há muitos anos – antes da construção do porto que alterou drasticamente a morfologia da zona costeira da vila – era um pequeno parque de estacionamento de terra batida faz hoje parte de uma ampla avenida marginal.
A terra que viu nascer Vasco da Gama está hoje completamente diferente da pequena vila piscatória que se animava nos meses de Verão com os banhistas oriundos maioritariamente do interior alentejano.
Percorri toda a costa da península de Sines pela avenida marginal. Do agreste Cabo de Sines pouco resta, a não ser o farol, hoje mais distante das águas que aí eram bem revoltas.
Continuei para norte. Passei ao lado da cidade de Santo André (que até 1991 nem sequer tinha existência oficial) que foi construída para ser o dormitório dos trabalhadores do porto e das indústrias sediadas em Sines e, em Brescos, virei para a Lagoa de Santo André.
Muito diferente daquilo que conheci há muitos anos. Não há vestígios das típicas casas de madeira, pedra e adobe com cobertura de colmo. As dunas estão limpas, salvo alguma restauração de apoio à praia. A lagoa continua bonita. Infraestruturas turísticas não se vislubram e as que me recordava de então estão em ruínas ou para lá caminham.
Convém referir que, apesar da costa marítima ser um areal contínuo de Tróia até Sines (cerca de 40km), o mar não é idêntico. Nas praias mais a norte, a ondulação é baixa e relativamente fraca e os banhistas conseguem ter pé durante algum pedaço. Mais a sul, a ondulação é forte e assim que se entra no mar, perde-se o pé. Daí talvez a pouca atractividade turística apesar da excelência do areal.
Pouco à frente, a Lagoa de Melides é em tudo idêntica. Mais pequena que a anterior mas com idênticas características.
Quer numa quer noutra, os banhos não serão muito recomendáveis pois as águas são afectadas pela actividade agrícola a montante, nas ribeiras que as alimentam. Mas é interessante assistir quando são unidas (de forma artificial, claro) ao mar para renovação das águas.
Aqui estava terminado o périplo. Era hora do regresso a casa. Ainda repeti um pouco da estrada de Melides a Grândola, até apanhar um pedaço da A26 até ao IC1/EN120 que me levaria de novo até Alcácer do Sal.
Entrei pela ponte metálica, quase ao final da tarde e com uma luz muito favorável à fotografia.
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