Duelo de irmãs ao sol da Arrábida…e arredores!

BMW F850GS vs BMW R1250GS
Aproveitar o bom tempo para ver onde acaba uma e começa a outra. Será que são complementares ou concorrentes?

BMW R1250GS vs BMWF850GS

A rainha das trails versus a sua irmã mais pequena

Contacto ocasional com a Caetano Baviera abriu a oportunidade para uma abordagem diferente.

Em vez de uma experiência de condução com uma moto específica, porque não lançar o desafio de comparar a rainha de vendas do segmento trail – a BMW R1250 GS, recém chegada ao mercado depois da última evolução que para lá do aumento de cilindrada se traduziu na introdução de um conjunto de melhorias que provam que mesmo num produto com ampla aceitação e inegável qualidade é possível sempre continuar a busca pela perfeição – com a sua irmã “mais pequena” – a F850 GS, cuja última versão também é recente e que é quase uma moto totalmente nova face à sua antecessora, também neste caso com um aumento de cilindrada mas em que a mudança foi muito mais além.

Desafio lançado e a Caetano Baviera BMW Motorrad simpaticamente correspondeu!

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Estavam portanto lançados os dados para mais uma experiência de condução das Viagens ao Virar da Esquina!

O mote lançado foi: será que onde uma acaba, a outra começa?

Porquê? Fará a questão algum sentido? Explico…

Qualquer marca (no mundo das motos ou em qualquer outro domínio) deve saber claramente a quem se dirigem os seus produtos. Quais as necessidades dos potenciais Clientes e como podem as mesmas ser satisfeitas. E, se acrescentarmos alguma dose de génio ao processo, conseguir saber quais as necessidades mesmo antes de os Clientes e o próprio mercado delas terem consciência (os apelidos Gates ou Jobs dizem-vos algo?).

Identificadas estas, porque diferentes de individuo para individuo (mas não tão diversas assim) é fundamental agrupá-las de modo a que um mesmo produto possa ir de encontro ao maior número possível de destinatários (chama-se a isto segmentar o mercado e a óbvia vantagem é poder massificar a produção tornando-a o mais acessível possível). Criados os segmentos, identificadas as características dominantes do produto, é altura de lançar a produção e fazer o teste derradeiro: a aceitação (ou não) do mercado.

Feito este arrazoado (deformação profissional, desculpem-me!) explica-se a pergunta que atrás serviu de mote. Será que o Cliente típico da 1250 é totalmente diferente do da 850? A resposta é relativamente fácil. E será que os produtos – a 1250 e a 850 – são totalmente diferentes…ou pelo contrário existem muitos pontos de intersecção?

Esta a questão a que tentarei dar resposta através da experiência de condução dos dois modelos, em dois dias consecutivos em que cada um foi dedicado a um deles. Também o percurso escolhido, similar para ambos, procurou avaliar as motos na suas diferentes vertentes de utilização: cidade e dia-a-dia, auto-estrada e estradas rápidas, estrada de montanha sinuosa e também um cheirinho de todo o terreno (apenas estradão que as competências do escriba são modestas neste domínio…mas aqui uma das grandes surpresas! Já lá iremos…).

Começámos com a 1250 e no dia seguinte a 850. Os caminhos escolhidos, para lá da cidade de Lisboa e arredores, passaram pela A2, pela praias da zona da Lagoa de Albufeira e Meco até ao Cabo Espichel. Depois Sesimbra a caminho da Arrábida onde nos deleitámos nas maravilhosas estradas desta serra. Finalmente, o regresso à base.

Na cidade e no dia-a-dia

Comecei com a 1250.

Tinha previsto fazer ao contrário: primeiro a mais pequena e depois a “mana grande”. Numa perspectiva de ir de menos a mais até porque tinha algum receio de, se fizesse ao contrário, poderia sentir alguma “desilusão” com a 850. Mas, por conveniência de momento, acabei mesmo por começar com a 1250.

A moto impõe respeito. Por duas razões: a dimensão (a mota é grande, naturalmente) e o facto de ser a rainha do mercado! Ainda por cima recém melhorada. O top das trails. A versão que me foi confiada foi a HP. E a mota é verdadeiramente bonita! Não foi amor à primeira vista (já não tenho idade para essas coisas…) mas nunca deveremos omitir e deixar de realçar a beleza. Mesmo sendo um conceito discutível… Deixando as emoções de parte, a análise será o mais imparcial possível, como é óbvio.

Feito o primeiro contacto à moto, às suas características e modus operandi, comecei e… três coisas ressaltam desde logo: o excelente “encaixe” na moto (banco na posição mais elevada para o meu 1,82m) com uma correcta ergonomia dos punhos e todos os comandos disponíveis, um painel de bordo, melhor dito um ecrã de 6,5” excelente – visibilidade impecável em qualquer situação de iluminação, informação excelentemente distribuída, menus facilmente acessíveis a partir do punho esquerdo e …bonito! – e uma sensação de leveza na condução surpreendente para a envergadura da moto. A adaptação foi quase imediata. Comecei aqui a perceber a razão do sucesso…

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A condução no trânsito citadino matinal é fácil (convém ter cuidado que o ponto mais largo são as cabeças dos cilindros opostos, localização pouco habitual para quem não conduz estas motos) e convém realçar que não tinha atrás o kit de malas (que impõe outros cuidados). A moto conduz-se com muita facilidade – será que aqui fica bem o conceito de flexibilidade? Parece que ondeia à medida que vamos ultrapassando os infelizes enlatados enfileirados – e convém não esquecer: são 136cv no punho direito com um binário de 143Nm; esta é uma moto a sério! E a resposta é a condizer.

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A moto estava equipada com os diferentes modos de condução que podem ser alterados em andamento através de um botão no punho direito: Rain (que não experimentei), Road, Dynamic Pro e Enduro Pro. Em cidade rodei sempre no modo Road, o mais adequado à partida (embora nalgumas zonas se calhar o Enduro Pro faria sentido, face ao estado em que algumas vias estão. Mas essa é outra conversa…).

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No segundo dia, aguardava-me a 850. A versão destinada foi a Rallye e a sua decoração muito semelhante à da “mana grande”: tricolor azul, branco e vermelho com jantes douradas. Coerente!

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Obviamente bonita para mim (já referi antes que gosto desta escolha cromática mas aceito qualquer outra opinião…), a primeira impressão foi que também aos comandos as parecenças são grandes. Pela ergonomia perfeita (os comandos dos punhos são iguais) e pelo ecrã igual. Acho que outras marcas deveriam dar uma vista de olhos neste ecrã. Já o banco me pareceu ligeiramente baixo mas a polivalência tem o seu preço (provavelmente escolheria um um pouco mais alto…mas como se verá adiante, foi pormenor rapidamente esquecido). Quanto ao tamanho, naturalmente mais pequena que a antecessora. Diria que uma moto, à partida, muito adequada para o dia-a-dia.

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A primeira impressão não foi extraordinária. Leveza na condução, verdadeiramente fácil a adaptação, boa maneabilidade sem dúvida, agradável mas…faltava ali alguma coisa. Seria potência? Os 95cv não são assim tão poucos. Nem os 92Nm. A ideia que depois confirmaria de certo modo é que o motor parece “pouco cheio”. É linear no subir de rotação e talvez lhe falte um pouquinho de alma a baixas rotações. Adiante…

A moto tinha dois modos de condução: Rain e Road. Obviamente foi este o escolhido para toda a jornada.

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A circulação nas vias atascadas da capital é fluída, natural, despachada, muito fácil. A moto corresponde perfeitamente.

Uma nota sobre uma característica comum a ambas as motos: o sistema keyless! Levamos a chave no bolso. Quando chegamos à moto é só dar ao botão. Afastamo-nos e está em segurança. Extremamente prático, confortável, conveniente. Não é original mas é muito bom!

Outra característica comum (e, em geral a todas as trails): a condução em cidade é muito facilitada e mais segura porque conseguimos ver por cima dos tejadilhos dos automóveis e antecipar o que vai acontecer lá mais à frente. Também os espelhos passam por cima dos dos automóveis o que facilita imenso mas, cuidado…estão mesmo à altura dos das Transits desta vida!

Auto estrada e estradas rápidas (ou não…)

De novo na 1250!

Saí rumo a Sul. Ponte 25 de Abril e a dúzia de quilómetros até à saída para Sesimbra. Aqui, estrada nacional sem grandes constrangimentos, piso bom, em ritmo rápido (e modo Road) até à Lagoa de Albufeira.

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Duas referências que confirmaria ao longo do dia: a primeira para a protecção aerodinâmica. Ecrã na posição mais elevada (regulação manual muito fácil) e apenas a sentir algum fluxo de ar (um ligeiro turbilhão e não propriamente o ar a fluir) na zona do peito. Muito confortável mesmo a velocidades um pouco mais elevadas… E esta é outra nota: a moto acede com toda a naturalidade a velocidades de cruzeiro acima do legal. Se não olharmos para o velocímetro somos frequentemente surpreendidos! E confirmei isto em todos os terrenos pisados!

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O dia estava óptimo e a quantidade de gente na praia sugeria que se calhar…. Fotos tiradas e regresso ao caminho. Deixe-mo-nos de tentações! Até porque a companhia merecia toda a minha atenção!

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Da Lagoa até Alfarim, nada a apontar mas quando inflecti para as praias e a qualidade do asfalto se degradou substancialmente a primeira nota de destaque negativa. No modo Road transmitia uma sensação de estar a navegar ao sabor das ondas, algo ondulante (pouco confortável e a tirar confiança). Mais tarde passei para o modo Enduro Pro e melhorou substancialmente.

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Mais umas fotos agora na Praia das Bicas, que isto também requer algum sentido estético e segui viagem…por outro pisos!

24 horas depois, repeti o trajecto, agora com a F850GS.

Naturalmente as sensações foram completamente diferentes. E o primeiro destaque, neste caso negativo: a protecção aerodinâmica que elogiei na 1250 é aqui quase inexistente. De facto esta versão tem um ecrã reduzido e a velocidades acima de 100km/h é desagradável. A 120 então….

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Soube depois, que noutras versões existe um ecrã um pouco maior e que, melhor, tem duas posições de altura, que acredito quase resolverem esta situação.

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Em andamento, a moto sobe de rotação e velocidade com toda a naturalidade, muito disponível e dar a entender que são possíveis ritmos de viagem bem interessantes.

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Quando cheguei ao piso degradado, uma agradável surpresa. Nada de parecer um “barco”. Pelo contrário, absorvia naturalmente as irregularidades do asfalto, transmitindo segurança e até algum conforto (o possível nas circunstâncias).

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E aqui comecei a mudar a minha opinião! Esta moto tinha qualquer coisa…. Acho que duas palavras viriam a resumir esta impressão: confiança e divertida. Veremos adiante que era mesmo isto.

Em todo o terreno (mais ou menos…)

Novamente com a “big thing”

Saído da Praia das Bicas (não contem a ninguém…é segredo…uma das praias mais bonitas da zona a sul de Lisboa!) rumo ao Cabo Espichel passando pela Praia da Foz (selvagem e linda), o caminho passou a ser de terra batida. Estradão em bom estado e a permitir uma experiência de condução em terrenos que não me são familiares, por uma dúzia de quilómetros.

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Opção pelo modo Enduro Pro (que já vinha de trás) e vamos a isto. Com extremo cuidado, pois nem a perícia é muita nem a envergadura da moto recomendava afoiteza em excesso. Além de que a moto não era minha…se não gosto de estragar o que é meu, muito menos o alheio!

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E bem….a confiança que a moto transmite, absorvendo correctamente todas as imperfeições do terreno (garanto, melhor do em qualquer dos modos de condução no anterior alcatrão degradado), com uma segurança na pilotagem quer sentado quer em pé (posição correctíssima) que me foi inspirando ao ponto de a certa altura já circular a velocidade pouco recomendável…que quando constatei, reduzi! Sem dúvida a BMW sabia por demais o que estava a fazer. Uma moto com este peso, envergadura significativa e a conduzir-se com uma facilidade e um prazer imenso, deixando uma nuvem de poeira para trás. Palavra muito positiva para a polivalência, pois se em estrada já tínhamos constatado a competência (conforto, rapidez, segurança) aqui ficou comprovado o excelente trabalho realizado.

Chegado ao Cabo Espichel, algumas fotos e rumo à Arrábida com uma breve passagem por Sesimbra, agora já só por alcatrão.

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Depois da boa experiência da véspera era a vez da 850!

E começa o divertimento!!!

A caminho da Praia da Foz (como no dia anterior) primeiro contacto com a terra! E que surpresa.

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A leveza da moto, a disponibilidade do motor, sem qualquer reacção brusca ao acelerador, inscrevendo-se com facilidade nas curvas, rapidamente se transformou no momento mais divertido do dia que depois se prolongou. Já lá irei.

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Se na 1250 sempre tive algum cuidado pelo tamanho e potência da moto e a perfeita consciência que qualquer reacção inesperada poderia dar azo a uma surpresa desagradável, com a 850 veio ao de cima a minha experiência em BTT. Em vez de dar ao pedal, aqui era só enrolar punho e desfrutar. Em pé ou sentado dei por mim a desfrutar imenso da condução da 850 neste piso. Será por se chamar Rallye?

De tal forma assim foi que, depois da visita ao Cabo Espichel e até Sesimbra, dei por mim a procurar estradas laterais em terra por onde pudesse continuar a diversão. O que aconteceu na zona da Serra da Azóia. Soube depois que poderia ter explorado um pouco mais porque há por ali umas praias escondidas… Mas uma coisa foi certa: o divertimento continuou!

Cheguei a Sesimbra e desta vez resolvi parar. Tempo para recuperar forças, alimentar e lavar as vistas. Dia espectacular, demasiado quente para quem tinha que andar a fazer quilómetros, mais a convidar à praia…mas tão divertido até aqui!

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A 850 estava claramente a cativar-me.

Pelas curvas e contra curvas da Arrábida

Aos comandos da 1250, a aproximação à Arrábida feita por Aldeia de Irmãos (nome curioso…), era tempo de começar a explorar outro modo de condução: o Dynamic Pro. Suspensões mais rígidas, resposta do motor mais rápida, nitidamente outro aprumo na condução. Comparei com o Road e a diferença sente-se. Como era natural que acontecesse! Afinal está lá para isso…

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A característica que realça já a mencionei atrás. Em nenhum momento temos qualquer sensação mais negativa devido à dimensão da moto. Pelo contrário. O bom conhecimento da estrada levou-me a ensaiar um ritmo nalguns pontos, mais elevado que o que seria normal (sem exageros…). Não era nitidamente ritmo de passeio…mas fiquem a saber, quer num dia quer noutro, aquela paisagem estava verdadeiramente deslumbrante!

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A moto, fruto certamente da sua geometria e do baixo centro e gravidade, inscreve-se nas curvas com uma leveza extraordinária que contrasta com a explosão (perfeitamente controlada!) à saída da curva em que o binário mais que mostrar presença, diz-nos claramente para que serve.

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Um deleite puro!

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E não tenho dúvidas que, com tal conforto e segurança, poucas “R” conseguiriam mostrar tal nível de serviço. Terão outros predicados, como é óbvio. Mas neste patamar, do utilizador comum, sem especiais dotes “artísticos”, que quer um veículo para viajar e desfrutar, tirando prazer quer dos locais por onde passa quer da condução, sempre confortável e seguro, a R1250 GS cumpre o seu papel na perfeição.

Afinal, para quem acredita na realidade e poder do mercado, a prova está dada. Por alguma razão, nas suas sucessivas evoluções, é há 20 anos a referência do segmento (ainda voltarei a este termo) e líder de vendas.

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No dia seguinte, e depois de alguns quilómetros divertidíssimos, era tempo de repetir a Arrábida.

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Sensações muito diferentes relativamente à véspera. O que antes era potência e binário, ritmo quase a roçar o vertiginoso, aqui…suavidade e um aprumo notável a fluir de uma direita para uma esquerda e vice-versa. Parece-me que o termo correcto é precisamente esse: fluir. Saímos de uma curva com toda a naturalidade a preparar já a trajectória para a próxima, sem sobressaltos nem qualquer desconfiança. Nas pequenas rectas…o punho enrola e a resposta está lá para alcançar a velocidade que na curva seguinte nos vai obrigar a utilizar o travão, sempre sem comprometer nem de qualquer forma assustar.

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É evidente que a forma de conduzir uma e outra neste ambiente, não é o mesmo. Pelas diferenças de dimensões, potência e geometria das motos. Na 1250, reservava o travão dianteiro para alguma correcção mais rápida e de pormenor, mas a entrada na curva era feita com o travão traseiro. Entrada controlada na trajectória, moto estabilizada e progressivamente acelerar aliviando o pé direito. Comportamento fantástico. Equilibrado e rápido. A posição de condução perfeita para este exercício diga-se.

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Já na 850, talvez por menor binário o exercício não resultava tão bem. A inserção em curva feita da mesma forma, mas mais em cima e com algum apoio do travão dianteiro e depois uma saída com um enrolar de punho mais entusiasta. Condução um pouquinho mais brusca, talvez. Mas atenção… foi a minha forma de entender a condução de ambas as motos…não necessariamente a única, nem sequer eventualmente a mais adequada, admito. Cada um dança a música tal como a sente…

E em momento algum, a 850 me desiludiu neste ambiente. O que a 1250 tem em poder, esta tem em leveza e isso, inclinando para a direita e depois para esquerda, sente-se principalmente na inserção do corpo na moto. Balançamos como se fossemos só um. Já vos tinha dito que esta moto é mesmo divertida?

Notas finais

Para lá do que já foi dito ao longo do texto, há alguns pontos a realçar para finalmente procurar a resposta à questão inicial.

O consumo! Uma verdadeira surpresa. Acredito que, em ritmo mototurístico (que será sempre bastante rápido) a 1250 apresente consumos na fronteira dos 5 litros/100, eventualmente poucas décimas acima. Notável para um motor com 136cv, um binário fantástico e pesada. Com pendura e carga, aproximar-se-á dos 6. Excelente na mesma.

Já a 850, em utilização normal em estrada, com cidade pelo meio, algo a rondar os 4 litros/100 é excelente. Mais uma vez, carregada poderá ultrapassar os 4,5 mas será certamente por pouco.

Não é certamente pelo consumo que estas motos, uma e outra, deixarão de recolher as simpatias do mercado.

Algo que tardo em perceber é a utilidade do quick shift nestas motos. Em competição é outra coisa, mas aqui? Principalmente quando temos que salvaguardar que nas mudanças mais baixas (até 3ª) temos que continuar a utilizar a manete esquerda. Ou seja, umas vezes sim…outras não. Experimentei para ver o seu funcionamento. E rapidamente uniformizei o procedimento…sempre com embraiagem.

E a propósito, por falar em caixas de velocidades, não daria nota máxima a qualquer uma delas. Obviamente que o maior grau de exigência vai para a 1250. Nunca chegando ao nível de “prego” mas nalguns momentos notei uma certa falta de rigor na engrenagem…algo “folgada”. Já na 850, notei algumas vezes uma certa imprecisão para achar o ponto morto. Todavia o engrenar da mudança pareceu-me mais rigoroso (com melhor encaixe…) o que resultava numa utilização mais agradável. Mas atenção, estamos a falar de pequenos detalhes em motos que estão a um nível muito alto, e portanto também com expectativas lá em cima. O que aqui parece “defeito”, em motos menos ambiciosas seria virtude…

Será que onde uma acaba, a outra começa?

É evidente que uma resposta rigorosa e literal seria sempre negativa. Porque nunca podemos dizer que uma moto “acaba”…ela servirá sempre para o seu dono cumprir os seus sonhos ou satisfazer as suas necessidades de deslocação, atendendo às respectivas capacidades. Se não vai mais depressa, vai mais devagar. Se vai menos confortável, fará menos quilómetros de cada vez. Mas irá e fará!

A questão coloca-se no plano que no inicio falei. São motos destinadas ou não a segmentos diferentes?

A resposta é clara: Sim!

A R1250GS é uma moto claramente vocacionada para as longas tiradas. Confortável, polivalente, rápida. Com potência e binário mais que suficiente para alcançar o outro lado do mundo! E sem massacrar o físico do seu feliz condutor.

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Na minha experiência fiz cerca de 240km. Com algum grau de exigência pois tentei diversos tipos de piso, algum empenho na condução, estradas reviradas e acima de tudo muita concentração para conseguir captar as sensações correctas. Cheguei ao final do dia (bastante quente por sinal) preparado para outros tantos…ou mais ainda. Diria que os 1000km que nos separam da Europa, são para fazer de uma só vez e “com uma perna às costas”.

E, será que não serve para o dia-a-dia? Claro que sim. A sua “leveza” e facilidade de condução traduzem-se numa agradável utilização quotidiana. E não será expectável que muitos consigam ter 2 motos na sua garagem… por isso, a polivalência da 1250 garante essa utilização sem qualquer constrangimento (nem sequer o consumo se ressente por aí além).

Coisa diferente é assumir que esta é uma boa moto para o dia-a-dia. E pode ser…pode ser… que um dia…até vá até ao deserto…nem que seja ali para os lados de Beja, por exemplo. Nesse caso diria, que desperdício.

Mas atenção! Quando se analisam os critérios que ponderam uma segmentação, o status pode ser um deles…e até nada despiciendo! Por isso vemos tantas GS “das grandes” com utilização quase exclusivamente citadina…

Até aqui a BMW sabe o que faz!

E quanto à 850?

Falei em divertimento mais que uma vez a propósito dela. É a minha melhor definição. Uma moto excelente para as viagens do quotidiano que cumpre confortavelmente e de forma económica todos os requisitos de quem a utiliza no seu dia-a-dia.

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E depois…ao fim de semana, vai curtir umas estradas – e uns caminhos, pois claro! – em viagens de curta duração. Diria que o limite da agradibilidade andará na casa dos 300/350km por dia. A partir dai, o corpo do condutor é capaz de começar a queixar-se…

Mas uma distância dessas cobre a quase totalidade do território nacional…e quantas vezes por ano o motociclista médio vai até paragens para lá da fronteira? Com etapas diárias a raiar os 500 ou mais quilómetros? É que ela também os faz. E ligeira…mas o nível de conforto não é comparável com a “mana maior”.

Pode ser ousadia dizê-lo (quem sou eu afinal?) mas…a BMW fez um excelente trabalho na segmentação do mercado, identificando os seus clientes alvo e dotando os seus produtos das características adequadas a cada perfil!

Há dúvidas? De certeza que não. Os resultados de vendas estão aí a prová-lo.

Outras marcas seguem estratégias diferentes, quer na concepção dos seus modelos (com segmentação parecida) quer na escolha de perfis de Clientes com outro tipo de anseios e portanto dotando as suas motos de características diferentes. É normal. É assim que funciona o mercado. Os volumes de negócio face às próprias expectativas identificam as mais bem sucedidas e as outras. Umas mais bem sucedidas, outras nem por isso. É a beleza da coisa….

Agradecimentos

A minha imensa gratidão vai para a Caetano Baviera BMW Motorrad que tão gentilmente correspondeu ao desafio, cedendo as duas motos que serviram para mais esta experiência de condução das Viagens ao Virar da Esquina. Muito obrigado!

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E quem sabe…algum novo desafio surge no futuro?

As principais protagonistas desta experiência foram, pois claro, as motos:

BMW R1250 GS HP (para os amigos e conhecidos, popularizada como a “GS”…o que diz muito)

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BMW F850 GS Rallye
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Da Lagoa de Albufeira à Comenda de Monguelas

Começar novo ano com um passeio de moto num dia frio mas cheio de sol é excelente.
Se as paisagens são magníficas,melhor.
E condimentado com histórias surpreendentes…que mais pedir?

Ainda agora o ano começou. Nada como dar-lhe as Boas Vindas!

Manhã cedo, o sol radioso convidava a um passeio. Brilhava intensamente num céu tão limpo a fazer lembrar dias de outras estações. Mas a temperatura não mentia: é Inverno…e está frio! Nada que atemorize o motociclista, até porque frio é questão apenas de agasalho.

Por outro lado, o sol de Inverno (isto faz lembrar memórias do Festival da Eurovisão…era o nome da canção que Simone de Oliveira interpretou em 1965, naquela que era a segunda participação portuguesa no certame e que trouxe o primeiro – e único na altura – ponto do concurso obtido por Portugal!) é fantástico para a fotografia. O astro está mais baixo e a inclinação dos raios solares traz cambiantes de cor que não se conseguem obter noutras estações do ano.

Dito isto, moto em marcha, equipamento quentinho e “pé na estrada”, que nesta altura o dia acaba cedo.

1ª parte – Da Lagoa a Sesimbra

A saída de Lisboa fez-se pela Ponte 25 de Abril. Já não era cedo e as últimas neblinas matinais começavam a desaparecer. Excelente…até porque passar a ponte de moto é sempre espectacular. Depois, A2 até ao Fogueteiro, N378 (Estrada de Sesimbra) até à Rotunda da NATO e depois à direita para a N377 rumo ao ponto inicial do périplo: Lagoa de Albufeira. Depois de passarmos pela Herdade da Apostiça, cruzamento à direita e uma longa avenida até à margem da Lagoa.

Vista da Lagoa de Albufeira. Ao fundo, o mar. No meio da lagoa, os viveiros de mexilhões.

A Lagoa é alimentada pela água doce das ribeiras da Apostiça, Ferraria e Aiana, e pela água salgada do oceano Atlântico, quando o cordão dunar é aberto oficialmente na primavera. É constituida por três lagoas: a Grande, a Pequena e a da Estacada. Com 15 metros de profundidade máxima, a Lagoa de Albufeira é considerada a mais funda de Portugal. Desde 1987 que faz parte da Reserva Ecológica Nacional e em plataformas no meio da lagoa são visíveis bastantes viveiros de mexilhão. O vento bastante frequente torna este local belíssimo, excelente para a prática de desportos como sejam o windsurf, kitesurf, etc.

Lagoa de Albufeira
Lá ao fundo…Espichel

Regressamos à N377 até à aldeia de Alfarim, onde viramos logo na primeira rotunda à direita. As placas indicando “Praias” não enganam. É mesmo por aí. Descemos alguns, poucos, quilómetros e estamos na conhecida Praia do Meco.

Chegada à Praia do Meco

Inicialmente conhecida pela prática do naturismo, mais tarde pela realização de concertos de Verão, mas acima de tudo pela excelência da sua praia. Apesar de já dotada de alguma infraestrutura, adivinha-se caótica nas épocas balneares pois o afluxo supera em muito a capacidade de estacionamento (como aliás sucede na Lagoa de Albufeira).

Já referi que a manhã estava espectacular? Não só o brilho do sol como também o magnífico azul do mar, que estava surpreendentemente calmo.

Regressando pelo mesmo caminho, o único de acesso à praia, pouco acima, um cruzamento: à esquerda leva-nos novamente a Alfarim, seguindo à direita acompanhando as indicações de “Praias”, a estrada que levámos.

Esta estrada, inicialmente de alcatrão com crateras, depois de crateras com alcatrão e finalmente, em terra batida (para o caso em estado muito razoável, permitindo a motas de estrada percorrê-la sem grandes preocupações, a não ser os cuidados necessários à pouca aderência).

Por aí seguimos até à Praia das Bicas.

Praia das Bicas

Praia rodeada por dunas altas, com uma escadaria bem lançada até ao areal e frequentada por uma boa dúzia de surfistas. O mar estava de feição, com algumas ondas a favorecer a prática. Nem imagino a temperatura da água….

Praia das Bicas

Mas o destaque vai para a sua beleza. Sem dúvida uma pérola…ao virar da esquina. Destacar o facto de nela existir uma Aldeia SOS. Excelente para os miúdos, sem dúvida.

Praia das Bicas: areal que se estende até à Caparica e lá ao fundo, o recorte da Serra de Sintra.

Proseguindo o caminho pelo estradão , rumo a sul e ao Cabo Espichel, mais uns poucos quilómetros e é a vez da Praia da Foz.

Praia da Foz

Pequena, entre arribas e até algo intimidante, seja pela imponência da arriba, seja pelo facto de ser algo “acanhada”.

Praia da Foz

A partir daqui…seguir o estradão. Ainda faltava meia dúzia de quilómetros para o Cabo Espichel. A cerca de 2 km do cabo, deixamos o estradão e tomamos a N379 que une Sesimbra à ponta mais a sudoeste da Península de Setúbal. De salientar que ao longo do percurso desde o Meco até aqui, algumas praias existem para lá das referidas. Mas aqui aconselhava-se talvez a utilização de moto com características mais trail.

A caminho do Cabo Espichel

Quase à chegada passamos pelo Aqueduto do Cabo e à nossa frente vislumbramos 2 edifícios de características completamente diversas: à esquerda o imponente farol e à direita o não menos impressionante Santuário de Nossa Senhora da Pedra Mua, com a igreja da Nª. Srª. do Cabo.

Lá ao fundo, ao centro o Farol e à direita o Santuário

Fomos primeiro até ao Farol. Imponente a vista e impressionantes as arribas do Cabo. Lá muito embaixo, o mar bastante calmo…mas de meter respeito! Olhando a norte, toda a costa marítima até às praias da Caparica e em segundo plano, a margem norte do Tejo e a Serra de Sintra.

As arribas do cabo Espichel

“Já em 1430 a irmandade de N.S.ª do Cabo tinha instalado um farolim predecessor do actual farol. A torre actual foi inaugurada em 1790, em 1865 era alimentado por azeite, mudando de combustível em 1886, quando a sua luz passou a ser alimentada por incandescência de vapor de petróleo e, muito mais tarde em 1926 por electricidade.

Em 1983 este farol tinha instalado um aparelho iluminante chamado de primeira ordem que emitia luz em grupos de quatro clarões brancos, em vez do antigo sistema de luz fixa. Com este novo sistema passou a ter um alcance luminoso de vinte e oito milhas náuticas (quarenta e cinco quilómetros).

A estrutura de apoio ao farol foi aumentada para os lados por volta de 1900. Em 1947 entrou numa nova era no que diz respeito à iluminação. Foi montado um aparelho óptico aeromarítimo, que já tinha estado ao serviço do Farol do Cabo da Roca. Esta nova óptica dióptica – catadióptica chamada de quarta ordem, um modelo de grandes dimensões, apresenta trinta centímetros de distância focal, produzindo lampejos simples, agora com um alcance luminoso de quarenta e duas milhas náuticas (cerca de sessenta e sete quilómetros)”

in Wikipédia

Farol do cabo Espichel

Depois, um passeio pelo Santuário. Linda toda a zona fronteira à Igreja, com a edificação do Santuário de um e de outro lado. Pena o seu não aproveitamento, mas pelo menos já não ao abandono como há alguns anos atrás. É um dos casos em que as imagens são mais eloquentes que as palavras.

Santuário
Igreja de Nª. Srª. do Cabo

No início da escrita deste Blogue, afirmei que o meu sonho é ir ao Cabo Norte, mas que para já, ficava pelo Espichel. O possível faz-se já…e guardamos o impossível para amanhã. Aí está a imagem que ilustra este desejo:

E eram horas de nos encaminharmos para o final desta primeira etapa do dia: Sesimbra.

Regressámos pela N379. No Zambujal, uma rua à direita de inclinação pronunciada – 20% – conduz-nos à Rua da Assenta. Nesta viramos à esquerda e começamos a subir rumo ao Castelo de Sesimbra (se tivéssemos virado à direita, iríamos até à Praia da Ribeira do Cavalo).

Pequena pausa nos 20% de inclinação…

O Castelo, em excelente estado de conservação, ergue-se em posição dominante no cimo de uma falésia, tendo a seus pés a vila de Sesimbra e a sua baía. Dentro do perímetro da muralha, encontra-se a Alcáçova de planta quandrangular dominada por duas torres, uma das quais a Menagem (e que no seu interior tem uma pequena exposição com o historial do castelo e da vila que domina).

Desde tempos imemoriais, foi esta zona ocupada, principalmente derivada da sua localização estratégica, na foz do rio Sado, abrigada pela baía e protegida pela serras onde se situa o monte ocupado pelo Castelo. A primitiva fortificação data da época de domínio muçulmano, tendo a praça de Sesimbra sido conquistada por D. Afonso Henriques, 18 anos depois da tomada de Lisboa, em 1165.

Vista de Sesimbra
Muralha do Castelo de Sesimbra
O castelo e a vila

Ainda no interior das muralhas está a capela de Nª. Srª. do Castelo, muito bem conservada e com interessantes painéis de azulejos.

Capela de Nª. Srª. do Castelo
Interior da Capela

Obviamente, a vista das muralhas, principalmente para a baía de Sesimbra é deslumbrante!

Sesimbra vista lá do alto!

Estava concluída a primeira parte do passeio. Agora era tempo de rumar à Arrábida, onde paisagens deslumbrantes e algumas histórias curiosas nos aguardavam…

Sesimbra ficou para trás.

A luz dos dias de Inverno é magnífica mas também um bem precioso. Porque os dias brilhantes não abundam e, principalmente, porque são curtos. Por isso era fundamental chegarmos rápido aos próximos destinos.

E o que terão em comum a viúva de um presidente americano, um espião inglês que segundo consta tem licença para matar, trágicos amores e desamores literários, um “Processo Revolucionário em Curso” ou palácios e fortes abandonados, praias maravilhosas e umas estradas que são uma delícia para fazer de mota?

O ponto comum é…a Arrábida!

2ª parte – Do Portinho à Comenda

Saí de Sesimbra em direcção a Azeitão pela mesma N379 que já nos tinha trazido do Cabo Espichel. Pouco antes de Aldeia de Irmãos viramos à direita seguindo as indicações “Arrábida”. Não tem que enganar.

A principio sem grandes inclinações mas já com curvas e contra curvas, uma constante a partir daqui, avançamos para sul em direcção ao contorno montanhoso da Serra. Depois de Casais da Serra, a estrada começa a empinar. Chegados mais acima, eis que surge, lá em baixo, o mar. Azul! Profundamente azul!

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O mar e Tróia, lá ao fundo

Um pouco mais à frente encontramos uma bifurcação. Para simplificação, chamarei “Estrada de Baixo” à que segue pela direita. Esta é a estrada que nos leva às praias e que depois de uma descida pronunciada segue sempre junto ao mar. À outra estrada, a que segue em frente, chamarei “Estrada de Cima” (para o caso é a N379-1, desde Aldeia de Irmãos até à Fábrica de Cimento do Outão).

Virei à direita, pela Estrada de Baixo. Descida pronunciada e no final, novamente à direita para o acesso ao primeiro ponto de paragem, visita obrigatória, a espectacular praia do Portinho da Arrábida.

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Portinho da Arrábida

Uma pequena enseada com um areal diminuto que progressivamente vai crescendo para leste até chegar à Praia do Creiro, em frente à grande referência paisagística: a Pedra da Anicha. Um pequeno rochedo que sobressai do mar a cerca de 100m da praia e que é reserva ecológica integrada no Parque Natural da Serra da Arrábida.

A meio da estreita estrada que conduz à praia e à meia dúzia de vivendas e aos 2 restaurantes que ficam praticamente em cima do mar, encontra-se o Forte de Santa Maria da Arrábida onde está localizado o Museu Oceanográfico. A destacar ainda a Estação Arqueológica do Creiro. Referir ainda que o acesso à praia é altamente condicionado: quer por semaforização alternada, quer ainda, na época estival por restrições mesmo de acesso. E o estacionamento? algo simplesmente….residual. Vantagem clara das motos!!!!

Regresso pelo mesmo caminho até encontrar novamente o cruzamento da Estrada de Baixo. Viro à direita, em direcção às outras praias. Sucedem-se o Creiro (cujo acesso pode ser pelo areal a partir do Portinho, ou por um caminho que desce até à praia). De referir que todas as praias por onde passamos se situam num plano inferior à estrada (que vai perdendo cota progressivamente) até se chegar à Figueirinha que essa sim está ao nível da estrada e já tem algumas infraestruturas mais adequadas a uma (muito pequena) estância balnear.

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A costa vista de Galápos. Destaca-se na esteira do Sol, a Pedra da Anicha

Depois do Creiro, passámos sucessivamente pela Praia dos Coelhos, por Galapinhos (recentemente coroada como uma das mais belas praias do mundo), por Galápos (alguém ainda se lembra do saudoso Seagull?…) e finalmente a Figueirinha.

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Galápos
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Praias. Portinho ao fundo
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Costa da Arrábida vista das proximidades da Figueirinha
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Praia da Figueirinha

Se o azul forte tingia o mar até aqui, junto às rochas que o bordejam encontramos outras cores e tonalidades que muito contribuem para a beleza deslumbrante de toda esta costa.

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Policromia marítima

E quando falamos de beleza, temos também que mencionar a sua antítese: a Fábrica de Cimento que tanto desfeia todo este enquadramento. Mas ainda antes de lá chegarmos, passamos por uma edificação que quase passa despercebida não fora ter um pequeno farol: o Forte de Santiago do Outão. Tendo origem no Séc. XIV, nele fica hoje o Hospital Ortopédico do Outão, depois de no início do Séc.XX ter tido a valência de Sanatório. Dele falaremos adiante quando mencionarmos o Forte Velho do Outão.

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Vista parcial do Hospital do Outão. Ao fundo: Tróia
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Forte de Santiago do Outão (Hospital Ortopédico)

Passado o Forte e ultrapassada a Fábrica de Cimento, cerca de 1km à frente, numa curva à esquerda, começamos a vislumbrar entre o arvoredo que envolve a estrada, um edifício imponente, mesmo à beira-mar… que aqui ainda é rio.

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Palácio da Comenda

Imponente pela sua volumetria, pela sua arquitectura e pela sua localização, com uma pequena enseada privativa e rodeado de frondosa mata (que vista mais em detalhe denuncia o abandono a que está votada…). Para lá chegarmos, ainda uma volta de estrada, passamos pelo parque de Merendas da Comenda e depois …o portão de acesso à Comenda de Monguelas!

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Comenda – Vista aérea

A Comenda é uma propriedade situada na encosta sul da serra, sendo as suas origens anteriores a 1800. Foi a mesma, incluíndo o luxuoso palacete e praia privada, vendida por D. Maria – Rainha de Portugal, em hasta pública, pelos idos de 1848. Fica a cerca de 2 km de Setúbal, banhada pelo estuário do Sado, com uma praia privada e de olhos postos em Tróia. Maravilhoso!

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Palácio da Comenda
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Palácio da Comenda. Vista para o mar

Conta a história que a construção neste local começou no período romano, com um complexo industrial de salga de peixe, passou por uma torre de vigia medieval, que, no século XVII, dá origem à plataforma de S. João da Ajuda, um baluarte situado estratégicamente à entrada do estuário do Sado.

E é sobre esta plataforma abaluartada que, no século XIX, é construída uma primeira casa de habitação. E era a que existia no local quando Ernest Armand, ministro de França em Lisboa, compra a propriedade, no dia 9 de Março de 1872, por cinco contos de reis. Mais de 20 anos após a aquisição da propriedade, o Conde d’Armand doou-a ao seu únco filho varão, Abel Henri Georges Armand. Com 5 filhos e querendo usufruir na plenitude da localização magnífica, o já conde por morte de seu pai, decide-se pela reconstrução da casa e adapta-a à sua condição aristocrática e às necessidades impostas pelo seu relacionamento com as melhores famílias europeias.

E para tal, chamou um jovem arquitecto português que posteriormente faria carreira prestigiada: Raúl Lino. Fundador e Presidente da Academia de Belas Artes, projectou entre mais de 700 obras, a Casa dos Patudos em Alpiarça, o Cinema Tivoli em Lisboa, o Cine-Teatro Curvo Semedo em Montemor-o-Novo ou os Paços do Concelho de Setúbal.

O aristocrata francês fez uma curiosa exigência ao então jovem arquitecto Raul Lino, quando lhe atribuiu o trabalho: que antes de iniciar o projecto gozasse de uma noite de luar no sítio onde planeava implantar a casa, como forma de melhor apreender o espírito do local para conceber um projecto em harmonia com a luxuriante paisagem. E assim foi! O projecto data de 1903 e a obra foi concluída em 1908.

Depois da morte do pai, e após os tempos difíceis da I Guerra Mundial, a casa passa para o novo conde, Roger Ernest Armand.

Nos anos 80, a quinta foi adquirida por um empresário do sector imobiliário, António Xavier de Lima que lhe terá feito algumas alterações que desvirtuaram a herança arquitectónica de Raul Lino, até aí inalterada. Após a morte deste, ficou ao abandono, exposta à degradação e ao vandalismo. Hoje, para a “visitarmos” temos que utilizar o expediente pouco legal de “pular o muro”.

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Palácio da Comenda
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Palácio da Comenda

Mas o Palácio da Comenda tem outras histórias para contar.

A Casa da Comenda foi cenário de verões repletos de glamour. Fosse na presença da própria família Armand e do círculo da melhor aristocracia europeia e portuguesa, fosse como estância de veraneio de outras famílias a quem cediam a casa, fosse a personalidades mais mediáticas, como a princesa Lee Radziwill, irmã da viúva do presidente norte-americano J. F. Kennedy, e do seu inseparável amigo Truman Capote, que no verão de 1965 ali terão passado uma temporada

Mas, ainda antes, terá sido uma mulher frágil e de luto que chegou ao Palácio da Comenda, na Serra da Arrábida, em Setúbal, logo após o assassinato do marido, John F. Kennedy, em Dallas 22 de Novembro de 1963.  Jacqueline Kennedy veio para Portugal com os dois filhos pequenos, Caroline e John-John, a convite dos condes D’Armand. Não há registos que assim tenha sido, de facto. Mas esse terá sido também o objectivo do isolamento pretendido…

Em 3 de Agosto de 1975, nova tragédia aparece associada ao palácio da Comenda. Nesse dia, um duplo assassinato ocorre na mansão: Madalena e seu cunhado Miguel aparecem assassinados a tiro, num dos quartos do 1º andar, aparentemente durante um encontro amoroso. No andar térreo, ao fundo da escadaria, Julieta, irmã mais velha de Madalena e mulher de Miguel jaz tombada com uma pistola na sua mão. A queda deixa-a longas semanas em coma e quando retoma o conhecimento, está cega e sem memória do que terá acontecido. Todos eram membros de uma família de posses, o que no Verão Quente de 1975 em Portugal não tornou a situação menos complicada. Justiça (politicamente) apressada condenou Julieta à prisão, acusada de ter morto o marido adúltero e a sua irmã. Afinal todas as evidências apontavam para ela, mas…

Assim começa a história que 28 anos mais tarde acaba por ser desvendada! Obviamente que nada disto ocorreu na realidade. Trata-se de um romance do escritor Domingos Amaral, editado em 2012, no qual o Palácio da Comenda serviu de cenário inspirador da maior parte da trama. Quer à época dos “factos”, o Verão Quente – precisamente o título da obra – de 1975, quer no posterior desenvolvimento do mistério, 28 anos mais tarde.

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Ainda hoje é possível aceder ao caminho que leva ao ancoradouro.

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Palácio da Comenda. Ancoradouro e praia privativa

Mas já não o é ao primeiro andar dos quartos, pois a escadaria onde Julieta tombou está completamente em ruínas. Assim como parte do tecto, quase todas as janelas e portas também. De facto a ruína apodera-se lamentavelmente deste edifício que hoje está completamente vandalizado.

Uma curiosidade: se por aí andar algum premiado com um jackpot do euromilhões, a Comenda de Monguelas está à venda por 50 milhões de euros (admito que uma boa negociação permita economizar uns trocos…). A localização é fabulosa, a paisagem não tem preço e a recuperação … enfim, é capaz de exigir algum investimento!

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Palácio da Comenda. Exterior

Daqui, voltámos pela mesma estrada, à zona da Fábrica onde viramos à direita, para a N10-4, vulgarmente conhecida por Estrada da Rasca (porque passa na aldeia com este nome). Pouco mais à frente, viragem à esquerda, e retomamos a nossa N397-1, a Estrada de Cima, desta feita em sentido contrário. Se primeiro percorremos a estrada que bordeja o mar, desta feita iríamos pela estrada que sobe a serra e corre pelo seu cume.

A próxima paragem não demora. Subida íngreme, em regime de curva e contra-curva, o mar à esquerda e, à medida que subimos, vislumbramos toda a magnificência do estuário do Sado: Tróia à direita, Setúbal à esquerda, ao fundo a zona industrial da Mitrena e no meio, um pequeno mar interior onde com frequência são visíveis as brincadeiras da comunidade de roazes que por aí vão andando.

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Estuário do Sado

Numa curva apertada à direita, temos à nossa frente a Porta de Armas da 7ª Bataria de Artilharia de Costa. Os portões abertos e o estado de abandono indiciam aquilo que iríamos encontrar uma fortificação ao abandono bem como os postos de tiro ainda com o que resta das respectivas peças de artilharia. Apesar do abandono, quer o forte quer a instalação de artilharia permite-nos ter uma boa ideia de como eram, quando em actividade. Entrámos!

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7ª Bataria – Porta de Armas

O forte, chamado de Forte (velho) do Outão fica no cimo de um promontório que tem aos seus pés, à beira mar, o já referido Forte de Santiago (Hospital Ortopédico do Outão) bem como uma das mais bonitas vistas da Serra da Arrábida.  A  construção do Forte Velho do Outão (também desigando por Forte do Zambujal, Forte do Facho ou Atalaião da Serra da Arrábida) ter-se-á iniciado cerca de 1649, quando João de Saldanha de Oliveira recebe a incumbência de construir um atalaião no alto da serra para colocação de peças de artilharia. Terá ficado concluído em 1655, quando uma carta do Rei D.João IV ordena ao Governador de Setúbal que entregasse o comando do Atalaião ao capitão Agostinho Cardos com uma guranição de 6 soldados. Esta fortificação complementava a posição bélica e defensiva do Forte de Santiago.

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Forte Velho do Outão
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Forte Velho do Outão – Ameias e vista para Tróia
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Forte Velho do Outão. Vista para Setúbal
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Forte Velho do Outão

O forte está, devido ao abandono, em estado adiantado de degradação, muito ajudado pela vandalização que ao longo do tempo tem sofrido – com os omnipresentes grafittis. Resiste apenas pela solidez da construção.

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Forte Velho do Outão. Escadaria interna

Um pouco mais à frente, acedemos à zona onde estão 3 peças de artilharia de médio alcance (10 a 20km) Vickers de 152mm. Eram elas que, quando em actividade, faziam a defesa da entrada da barra do Sado.

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Peças de artilharia

Funcionavam de forma coordenada, no âmbito do Regimento de Artilharia de Costa, com outras peças que asseguravam a defesa de Lisboa e Península de Setúbal, segundo o plano luso-britânico definido pelo general inglês Barron no pós 2ª guerra mundial. O objectivo era criar uma força especializada em impedir o desembarque de uma força convencional apoiadas por unidades navais naquela região. O plano foi desenhado em 1939, a construção desta 7ª Bataria decorreu entre 1944 e 1954 e cessou a actividade (pela obsolescência deste tipo de defesa) em 1998. O RAC foi extinto em 2001.

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Canhão Vickers 152mm

Esta 7ª Bataria funcionava em ligação com a 6ª sediada na Raposa próximo da Fonte da Telha e com a 8ª em Albarquel (Setúbal). Todas faziam parte do Grupo Sul do RAC que também incluía a 5ª Bataria da Raposeira (Caparica). Para lá das peças de artilharia é possível apreciar o esquema montado à volta (e por baixo) delas, maioritariamente subterrâneo, com casamatas para os militares, paióis para as munições e os sistemas de elevação destas para alimentarem as necessidades de tiro.

Das varandas e janelas do Forte, para lá da magnifica vista, vislumbramos também em pormenor o Forte de Santiago. Este é o resultado de sucessivas construções feitas naquele local estratégico da barra de Setúbal, a primeira das quais, uma torre de vigilância mandada edificar por D. João I em 1390.

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Forte Velho do Outão – Vista panorâmica

Ao longo do tempo foi sendo beneficiada e ampliada (um pouco também à medida do crescimento da importância marítima de Portugal e do porto de Setúbal em particular. As principais que resultaram numa ampliação significativa ocorreram no reinado de D. Sebastião. Mais tarde, durante a dinastia filipina, a Casa do Corpo Santo (importante instituição de Setúbal) solicitou ao rei a instalação neste forte de uma torre de farol para auxílio à navegação que ficou concluida em 1625 e tendo essa construção sido custeada por aquela instituição.

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Foz do Sado. Forte de Santiago em primeiro plano. Península de Tróia, ao fundo

Depois da Restauração da Independência, voltou o forte a receber importantes obras de modernização e reforço, cuja conclusão ocorreu em 1657. O forte manteve a valência bélica até ao Séc. XIX, quando foi desactivado. Foi depois, durante algum tempo utilizado como prisão. Em 1890 recebeu obras de adaptação e passou a ser utilizado até ao início do Séc. XX como residência de veraneio do Rei D. Carlos.

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Forte de Santiago (visto do Forte Velho)

Entretanto, a sua localização foi reconhecida como sendo valiosa no tratamento de doenças do foro pneumológico pelo que até 1908 foi utilizado como Sanatório. A partir dessa data, passou a ser um Hospital Ortopédico, função que ainda hoje conserva.

Concluida a visita à 7ª Bataria, o dia ia já muito avançado e era importante alcançar o ultimo ponto de destaque do périplo antes de anoitecer. Assim, seguimos em direcção ao alto da Serra, sempre com uma paisagem extraordinária a desfilar na frente dos nossos olhos, ainda mais realçada pela luz de final de dia. Passámos a zona das antenas, diversos miradouros e pontos de paragem que se sucedem à beira da estrada, tantos são os locais com vistas de deixar qualquer um de queixo caido.

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Panorâmica da encosta sul da Arrábida
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A caminho do cume
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Pedra da Anicha
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Panorâmica do Portinho da Arrábida

Ultrapassado o cume da Serra (no que à estrada diz respeito), iniciámos a descida. Um pouco à frente, quando já vislumbramos a vista para o Portinho da Arrábida e antes de passarmos pelo Convento (já falaremos dele), temos uma pequena reentrância do lado esquerdo, servindo de referência o facto de lá estar construida uma rampa para os praticantes de parapente que depois de sobrevoarem toda esta magnífica encosta, vão aterrar no areal do Portinho.

Foi precisamente neste ponto, à entrada da curva à direita logo a seguir ao miradouro, que em 1968, o agente secreto de Sua Majestade com licença para matar – Bond, James Bond (George Lazenby, no seu único filme da saga) – parou o seu inevitável Aston Martin. Estava acompanhado da sua noiva, Teresa (Tracy) di Vicenzo (Diana Rigg). Tinham acabado de celebrar o seu casamento na Herdade do Zambujal (Palmela) e este era o início da lua-de-mel. A paragem serviu também para o noivo retirar do Aston as flores que o ornamentavam desde a cerimónia do casamento. Mas 007 nunca está descansado! Um grande Mercedes 600, conduzido pelo vilão Ernst Stavro Blofeld (Telly Savallas) aproxima-se e ultrapassa-os. No banco de trás, à janela, Irma Blunt (Ilse Steppat), a diabólica ajudante de Blofeld dispara uma rajada de  metralhadora. Quando James Bond entra no carro verifica que Tracy estava morta…

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Cena do filme 007 – Ao Serviço de Sua Majestade
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O mesmo local…50 anos depois

Este é o relato dos 3 minutos finais de um filme que este ano comemora o seu cinquentenário e foi por muitos considerado o pior da saga sendo bastante menosprezado pela crítica de então. O filme é “007 – Ao Serviço de Sua Majestade” e estreou em Londres no final de 1969. De facto, a transição de intérprete principal não foi pacífica e isso penalizou Georges Lazenby, com um registo bastante diferente do carismático Sean Connery que tinha protagonizado os anteriores 5 filmes de James Bond. Mas para nós, será certamente um dos principais, pois nele podemos ver a Serra de Sintra e o Guincho, o Casino Estoril e a Baixa Lisboeta, para lá da Arrábida, obviamente!

Lá ao fundo vislumbra-se, numa curva da estrada, uma das guaritas de veneração dos mistérios da Paixão que fazem parte do chamado Convento Velho, uma das componentes do Convento da Arrábida. Este, construído no século XVI, abrange, ao longo dos seus 25 hectares, o Convento Velho, situado na parte mais elevada da serra, o Convento Novo, localizado a meia encosta, o Jardim e o Santuário do Bom Jesus.

Dessa guarita, temos uma visão excelente para o Convento Novo bem como mais uma lindíssima panorâmica de toda a Costa da Arrábida. Para acabar em beleza…

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Convento da Arrábida
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Guarita de veneração
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Arrábida – panorâmica

Estava concluído o passeio. Agora era tempo de regresso!

E a promessa inicial estava cumprida: falámos de uma viúva de um presidente americano, de um espião inglês , de trágicos amores e desamores literários, de um “Processo Revolucionário em Curso”, de palácios e fortes abandonados, de praias maravilhosas e de umas estradas que são uma delícia para fazer de mota!

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Pôr do Sol – a caminho de Azeitão

Tudo isto, numa Viagem ao Virar da Esquina…pela Arrábida!

Da Lagoa de Albufeira à Comenda de Monguelas – mapa do passeio:

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