Considerações iniciais sobre estereótipos e simplificações
Estereótipos são simplificações da realidade que a nossa mente utiliza para “poupar trabalho”. Os rótulos aplicados a um conjunto de elementos (quaisquer que sejam) facilitam-nos a vida pois escusamos de nos deter sobre cada um individualmente. São todos iguais…
Estas generalizações são frequentemente injustas e até prejudiciais. Porque desconsideramos produtos que mereceriam outra atenção ou perdemos a oportunidade de efectuar bons negócios.
É evidente que a febre das “Lojas do Chinês” não ajudou a vencer este estereótipo. Mas se olharmos atentamente para muitos produtos que consumimos de marcas reputadissimas pela sua qualidade, design ou preço iremos encontrar lá o “made in China”…e lá se vai a simplificação!
A que propósito vem afinal esta conversa?
Ao longo das décadas que se sucederam à 2ª guerra mundial, com o crescimento industrial e tecnológico fora dos locais tradicionais (Europa e Estados Unidos) observámos vagas sucessivas de produtos que nos chegaram primeiro do Japão, mais tarde da Coreia do Sul (e também de Taiwan, Singapura, Tailândia, Vietname, etc.) e finalmente da China.
Refiro-me em concreto ao mundo motorizado. Na década de 60 do século passado, apareceram os Datsun 1200 e Toyota Corolla 1200 nos autos e as Honda e restantes nas 2 rodas. Dizia apropriadamente a publicidade da Toyota que “veio para ficar”. E ficou (ficaram) mesmo!
Nos anos 90 começaram a chegar os Hyundai, Kia ou Ssangyong da Coreia, país que curiosamente nunca apostou muito nas motos (embora cá tenham chegado algumas scooters)
Já neste século, começamos a receber na Europa as motos provenientes da China (os autos estão mais demorados…).
E sempre, em todas estas vagas, se referiu que eram (más) imitações do que se fazia na Europa. Que eram mais baratos porque a qualidade era baixa, os componentes sofríveis, o aspecto roçava o feio e/ou o kitsch. Nem sempre era falsa a proposição. Mas com o tempo, aprenderam, aperfeiçoaram…e em muitos casos hoje dão lições.
Os Japoneses imitaram os Europeus. Os Coreanos imitaram Europeus e Japoneses (então já com créditos firmados). E finalmente agora, os Chineses copiam os outros todos.
Será que é mesmo assim? Barato, feio e sem qualidade?
Já disse que as generalizações são perigosas.
A VOGE 500DS é chinesa…tem qualidade, é bonita e o preço é competitivo. Experimentei-a.
Afinal o que é a Voge (lê-se “Vogue”)?
É uma marca que pertence ao grupo Chongquing Loncin. Potentado industrial que entre muitas outras competências fabrica os motores das BMW F750/850 GS (quer dizer algo, não acham?). E também fornece motores para algumas CF Moto.
Pois bem, a Loncin resolveu estabelecer-se com marca própria e criou a Voge com as pretensões de ser a sua marca premium neste sector. Isso significa que os respectivos produtos terão que ter qualidade percebida e reconhecida, alguma quota-parte de design próprio e características diferenciadoras face à concorrência. E aqui entenda-se concorrência global e portando confrontando-se directamente com marcas que são referenciais.
Tem duas motorizações base, monocilíndrico 300cc e bicilndico de 500cc, que distribui na sua gama por diferentes tipologias: estradistas, desportivas, clássicas e agora, trail.
Feita a apresentação, voltemos à máquina que ensaiámos.
E o primeiro aspecto que salta à vista é que a moto tem algo de déjà vu. E não pelo facto de o seu perfil ser o da moda: uma trail, no caso, de média cilindrada. Mas porque dá ares de uma moto bem conhecida: a Honda CB500X.
Pois é, o primeiro impacto faz-nos recordar a moto com que, afinal, a Voge 500DS se pretende comparar. As dimensões são semelhantes, a parte frontal ou a traseira esguia também, o quadro tem parecenças. E o motor, é (quase) uma réplica do da máquina japonesa. Bem, se o objectivo era copiar, escolheram bem. A CB500X é há muito a referência do segmento (ver ensaio aqui).
Mas esta cópia coloca em cheque as premissas iniciais que atrás referi: um produto premium que se distingue da concorrência. Temos que ir mais ao detalhe. E aqui a percepção inicial muda.
Características da Voge 500DS
Primeiro elemento diferenciador: o formato anguloso do depósito. Associado (neste caso) a um muito bonito vermelho mate que contrasta bem com os restantes elementos da moto. Os componentes da carenagem e depósito que envolvem de forma interessante a coluna de direcção têm muito bom aspecto e os encaixes não apresentam falhas.
Continuemos:
O assento em dois níveis, com o debruado a vermelho que lhe dá um toque de requinte. Para alturas algo acima do 1,80m, este “degrau” no assento poderá ser redutor do conforto´(tenho 1,82 e senti-me no limite do aceitável). Mas só aí.
Reparamos que o vidro é regulável, sem ferramentas. Também os manípulos são ambos reguláveis.
O painel é um ecrã TFT colorido – único no segmento – que ao ligar, tem uma pequena animação (a fazer lembrar motos de outras gamas mais sofisticadas) e depois nos apresenta uma quantidade de informação sem par para este tipo de motos.
A leitura é fácil e muda automaticamente o fundo de branco para negro consoante a luz ambiente (dia/noite). Apenas o design é discutível. Os gostos são subjectivos. A funcionalidade e a leitura adequada estão lá…e isso é objectivo!
Onde encontramos motos deste segmento que disponibilizem
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- pressão dos pneus
- indicador de carga da bateria
- temperatura do motor e temperatura ambiente
- ligação bluetooth
…para lá dos habituais relógio, conta rotações, velocímetro, odómetro, indicadores do nível de gasolina, mudança engrenada, média de consumo?
E por baixo ainda tem uma bem localizada tomada USB.
Prossigamos. Naturalmente saltam à vista as crash-bars. Discutível a opção? Talvez, mas se pensarmos que esta é uma moto que está habilitada a ser conduzida por quem tem carta A2 e dessa forma ser uma boa opção de entrada no mundo das motos, se calhar vemos o acerto da escolha. Que também contempla uma protecção de cárter (em plástico é certo). Como se costuma dizer, “mais vale prevenir que remediar”. E neste caso a Voge previne!
Chegamos ao escape, com um bonito silenciador com 2 saídas. Só uma é real, mas o look está lá!
Na traseira, para lá do porta bagagens discreto que incorpora os suportes para o pendura, temos o farol (em LED como aliás toda a iluminação da moto) a dar ares de design italiano…e piscas sequenciais (e não intermitentes como habitualmente). Novamente a fazer lembrar outros segmentos de maior valor. Detalhes excelentes!
Olhemos agora mais em pormenor. E reparemos nas marcas dos periféricos:
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- Suspensões Kayaba, em que a da frente tem forquilha invertida e a de trás é um monoamortecedor;
- Travões com pinças Nissin a actuar um duplo disco à frente e um disco na roda traseira
- Menos evidente mas o ABS é da Bosch…tal como a injecção
- Pneus Pirelli Angel ST
No início referi a inspiração na CB500X. No caso do motor…a cópia é quase perfeita. E é compatível com Euro5, já agora!
A cilindrada – 471cc – é igual, bem como as cotas internas e a potência disponibilizada também é similar. Bem, se é para fazer igual, que seja do que de melhor há no segmento…
Mesmo com esta última nota, a Voge respeita afinal as premissas fundamentais para a tal imagem premium: qualidade percebida, design próprio e características diferenciadoras.
E em andamento?
Sentamo-nos e a primeira sensação, depois confirmada é que o acesso é facil – altura do assento é de 821mm – e o assento é confortável. Também o guiador está no sítio certo e as nossas mãos caem com naturalidade nos punhos. O ecrã é bem visível embora algo sensível a reflexos principalmente se a luz do sol incidir.
Um primeiro apontamento algo estranho: o punho do acelerador tinha uma folga exagerada. Questão de afinação? Talvez. Vencida a folga e com alguma habituação, deixa de se notar. Mas estava lá. Já agora, referir que alguns dos comandos (dos piscas, por exemplo) têm um aspecto mais básico. Mas cumprem bem a sua função e isso é o principal.
Quando a colocamos a funcionar, para lá da animação do ecrã já atrás referida (assim a modos que umas boas vindas…) o que se distingue é o som que sai do escape: grave e rouco (também aqui a fazer lembrar de onde vem a inspiração). E antecipo que em andamento, se lhe puxarmos as rotações, a sonoridade é muito interessante e convincente.
Começamos a andar e as duas primeiras notas de destaque são:
1. A caixa é precisa e suave. No decurso dos cerca de 300km efectuados nunca deu sinal de fadiga ou de menor precisão.
2. O comportamento do motor. É peculiar (e isto não será defeito mas sim feitio) e terá que ser considerado em conjunto com a transmissão. Se olharmos para os gráficos de potência e binário podemos ver que:
a) a potência – 46,9cv – cresce linearmente até às 7.000rpm e depois entra numa espécie de patamar até ao limite cerca das 8.500rpm;
b) o binário – 40,5 Nm – é plano e estável desde as 3.000 até às 7.000rpm quando começa a descair.
Quando arrancamos e começamos a acelerar, chegamos perto das 4.500 e dá a sensação que esgotámos o motor. Ele pede mudança acima. Ao contrário, em desaceleração, conseguimos deixar cair em 6ª até às 2.000rpm, sem queixas do motor. Em cidade é possível fazermos quase a totalidade dos trajectos na mudança mais alta. Ou seja, tem grande elasticidade.
Mas aquela sensação de esgotamento às 4.500 é estranha. Até porque se não lhe fizermos a vontade de mudar de velocidade, a partir das 5.500/6.000rpm ganha nova alma, o som do escape entusiasma e temos diversão garantida. Provei isso nas curvas da Serra dos Candeeiros….
Até porque bem calçada com os Pirelli Angel ST e com os travões Nissin, transmite confiança e segurança. As entradas em curva fazem-se sem hesitações e as saídas em potência não destoam. Nem sequer o peso – 205kg em ordem de marcha – é notório no desembaraço com que passamos de uma curva à próxima.
Se o piso for de boa qualidade, então a diversão está assegurada! Se o piso for irregular, aí já a situação se altera porque a suspensão traseira, com apenas 61mm de curso, é muito firme e reactiva, denota alguma incapacidade para absorver ressaltos que possamos encontrar no asfalto. Nada de preocupante ou que coloque em causa a segurança. Apenas algum desconforto.
Outro aspecto negativo e que este sim é incomodativo: a cerca de 90km/h começamos a sentir vibrações nas peseiras (têm apoio em borracha que pode ser retirado) que se vão acentuando ao banco à medida que a velocidade aumenta.
Ao aproximarmo-nos dos 120km/h, as imagens nos espelhos dão a ideia de estarmos a ver alguns efeitos especiais… Curiosamente, se passarmos esta fronteira (não estou a afirmar que o fiz…digamos que é uma suposição!), as vibrações tendem a passar. Este fenómeno é estranho até porque o motor está dotado de veio de equilíbrio que seria suposto atenuar estes efeitos.
A protecção aerodinâmica é adequada. Normalmente andei na posição inferior e, em auto-estrada, na posição superior. O único senão é que para se alterar a posição é necessário estar parado. O sistema é do mais simples possível: um parafuso manuseável com uma mão, dá o aperto na posição desejada. Fácil e eficaz.
Feito o ensaio, aproximadamente 300km, com cerca de 20% em cidade, 10% em auto estrada e o resto em estradas nacionais, municipais e não classificadas, sem preocupações de poupança mas também sem exageros, o consumo rondou os 4,0 litros de combustível por cada 100km percorridos (se se insistir na autoestrada, é capaz de aumentar uma ou duas décimas). Nada mau, diria eu!
No cômputo geral, a Voge 500DS é uma moto muito equilibrada, de condução fácil (requer alguma adaptação face ao referido comportamento do motor), com óptimo aspecto e bons acabamentos. Está equipada com material de muito boa qualidade e tem pormenores que dificilmente encontraremos neste segmento ou em escalões de preço da mesma ordem de valores.
É evidente que continua a ser “uma moto chinesa”. E se o estereótipo se acentua ao ponto de se tornar preconceito, aí há pouco a fazer. Preconceitos nunca são coisa boa….
Não tem falta de qualidade, não é feia, não tem menos equipamento, não tem pneus manhosos! Lá se vai o estereótipo e confirma uma ideia feita: é mais barata que a concorrência directa.
Este resultado (o falhanço dos estereótipos) não me surpreende. Os orientais primam por evoluir em pequenos passos mas firmes e certeiros. A China está a fazer o percurso que outros, neste e noutros domínios, já fizeram. Primeiro a quantidade e depois a qualidade. O primeiro factor favorece-os – a escala é gigantesca – e permite-lhes evolução rápida e contenção de custos de produção. O segundo vem com a experiência e o investimento em inovação, algo em que são muito fortes, como sabemos.
Por falar em preços…
O valor de tabela é 6.395€.
A marca tem campanhas de promoção (desconto de 400€ na moto, kit de malas e top case em alumínio por 700€ em vez de 1.200€ e a possibilidade de irem buscar uma Euro4 por 5.295€)….se ainda forem a tempo!
Características técnicas
Conclusão
Voltamos ao principio. A Voge não esconde a pretensão de comparar a 500DS com a Honda CB500X. A Voge foi descrita e a Honda também (aqui). A diferença de preço de tabela é de cerca de 600€.
Como dizia o “outro”…é só fazer as contas. Com o consumo verificado, 600€ dá para cerca de 9.000km…algo como ir a Moscovo e voltar. Mais ou menos…
Ou seja, cada um toma as suas próprias opções. E a vantagem da chegada de motos como a Voge 500DS ao nosso mercado é que simplesmente alargam o leque de escolhas. A concorrência é salutar e beneficia os utilizadores finais. Nós…os motociclistas!
Seja bem vinda, Voge 500DS. Votos de muito sucesso!
VOGE 500DS – O filme
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VOGE 500DS
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